Publicado originalmente na França em 2000, O acontecimento, de Annie Ernaux, é um misto de romance e memória que aborda a questão do aborto – e, portanto, parece cada vez mais contemporâneo, dada a retomada das discussões sobre este tema, especialmente no Brasil. O livro foi lançado no Brasil há uns dois anos como parte do projeto da Editora Fósforo de trazer a autora de volta para o mercado brasileiro, por onde ela andou circulando com uma única tradução em 1994, do agora também reeditado Paixão simples. Ambos, aliás, bem como qualquer um dos seus outros livros disponíveis por aqui, como O Lugar, Os Anos, A outra filha, A vergonha, são grandes exemplares de seu talento para casar o pessoal e o político no pantanoso e controverso terreno da autoficção.
Ernaux nasceu em 1940, em Lillebonne, na Normandia, e foi criada em uma outra comunidade pequena da mesma região, Yvetot. Seus pais eram proletários que conseguiram gradativamente melhorar de vida no pós-II Guerra a ponto de montarem um pequeno comércio. Ela foi a primeira pessoa de sua família a ter uma educação universitária, algo que atribui ao fato de seu pai ter estimulado que ela continuasse estudando além do que era considerado “necessário” para alguém de sua classe social – ela conta essa experiência em O lugar, seu quarto livro, publicado em 1983. Na leitura de sua obra em conjunto, fica claro que talvez essa propensão do pai em deixá-la ir além dos limites para uma menina naquela época e lugar tenha raízes no passado familiar: o fato de que o casal havia tido uma outra filha que morreu antes de Annie nascer, ou a vergonha pela ocasião em que a filha viu o pai, em um acesso incompreensível (para a menina que a autora era) de violência, quase matar a mãe da garota.
Em O lugar, Ernaux rememora a biografia de seu pai impondo-se o desafio de tratar ficcionalmente apenas aquilo que ela conseguiu recuperar factualmente da vida do homem, um filho de pais camponeses, ex-trabalhador portuário que, após lutar na II Guerra Mundial, casou e estabeleceu-se numa pequena cidade com um armazém de secos e molhados – o “lugar” do título é uma referência tanto direta à casa em que o armazém funcionou ao longo do resto da vida do pai quanto ao lugar simbólico que esse pai ocupa não apenas na vida de sua filha mas na própria história da sociedade francesa como tipo camponês simples e rústico bastante representativo de uma França que foi ficando para trás ao longo do século XX.
Esta ênfase no social como elemento inescapável na formação de uma individualidade é um elemento que pode ser rastreado na obra de Ernaux desde seu primeiro romance, Les armoires vides, de 1974, um relato de inspiração autobiográfica sobre uma estudante de Letras vinda de uma cidade pequena e de uma classe social pobre e que rememora episódios de infância e adolescência. Outros de seus livros também mergulham fundo nesse exercício sofisticado de borrar os limites entre o ficcional e o romanesco. Uma mulher, de 1988, e A vergonha, de 1998, compõem com O lugar uma espécie de tríptico – o primeiro é uma narrativa sobre a mãe da escritora, o segundo, uma reflexão sobre a misteriosa vida familiar que a autora testemunhou na infância e o episódio traumático da tentativa de assassinato da mãe pelo pai. Paixão simples é outra narrativa de tintas autobiográficas sobre uma mulher recém-divorciada que se entrega a um caso obsessivo com um diplomata estrangeiro que entra em sua vida.
O acontecimento
Em O acontecimento, Annie Ernaux resgata as memórias de um episódio traumático vivido aos 23 anos, em 1963. O livro começa com a autora/protagonista numa sala de espera no fim dos anos 1990, aguardando os resultados de um teste de AIDS. A tensão e o suspense do momento remetem-na para as memórias distantes de uma angústia semelhante vivida quando estava na universidade de Rouen e engravidou de um relacionamento casual com um estudante de outra cidade, Bordeaux. Ao receber o diagnóstico negativo do teste de AIDS, ela decide voltar aos diários que manteve nos anos 1960 para retomar em ficção a angústia dos meses em que a gravidez indesejada representava a ruptura da sua vida até ali.
Vinda de uma aldeia no interior, filha de um casal de pais de origem modesta e um tanto conservadores, sem muitos amigos ou contatos na nova cidade, Annie se debate com a gravidez indesejada sem ter conhecimento de quem possa indicar os meios para interromper a gravidez. Na época, a legislação francesa sobre aborto, num país ainda alguns anos distante da explosão contracultural do fim dos anos 1960, era bastante restritiva. A pena era de multa e prisão, cassação de direitos de residência, no caso de estrangeiros, prisão e perda de diploma a médicos que fizessem o procedimento ou mesmo defendessem a utilização de métodos anticoncepcionais. Os meses entre o fim de 1963, em que a narradora descobre a gravidez, e o início de 1964, em que finalmente consegue praticar o aborto clandestino, são reconstituídos pela escritora tentando recuperar as sensações e as dúvidas que ela vivia no período e cujas anotações da época às vezes são bastante lacônicas em registrar.
O “acontecimento”, como ela o chama, toma conta da vida da jovem ao ponto de obliterar qualquer outro aspecto: é oferecida a ela uma vaga de professora de crianças e ela recusa; ela tenta seguir sua rotina normal mas tudo a leva de volta ao dilema que a paralisa. Depois que as primeiras tentativas de obter ajuda junto a médicos aleatórios ou a colegas de faculdade encontram olhares suspeitos e atitudes esquivas, ela passa também a sentir uma vaga paranoia sobre o quanto os demais estão inteirados de seu drama e se podem vir a entregá-la à polícia. Ela cogita também os perigosos e agressivos métodos “caseiros”, mas recua assustada com os riscos. O livro, como é comum nos trabalhos da autora, é curto e conciso, sua linguagem é distante, analítica, racional e meticulosa, de uma elegância em que cada palavra é apropriada, e o resultado é um drama pessoal transformado em um suspense psicológico.
Com a distância de mais de três décadas entre um fato e outro, Annie Ernaux também consegue ler tanto o que registrou no diário quanto dar novo significado ao que deixou de registrar. Ela nunca fala sobre ter engravidado, e sim usa elipses que contornam o fato:
“Para pensar minha situação, eu nunca empregava os termos que a designam, nem “estou esperando um filho” nem “grávida”, muito menos “gravidez, que rima com “estupidez”. Eles implicavam a aceitação de um futuro que não se realizaria. Não valia a pena dar um nome para algo ao qual eu tinha decidido dar um fim. Na agenda, escrevia: isso, essa coisa, uma única vez “grávida”.
Autoficção
O relato é em primeira pessoa, a personagem tem o mesmo nome da autora – na época, Annie Duchesne, seu nome de solteira. O trabalho de Annie Ernaux, portanto, costuma ser abarcado no amplo e controverso guarda-chuva daquilo que se pode chamar de “autoficção”, embora a própria autora não goste muito desse rótulo aplicado ao seu trabalho. A autoficção é um gênero no qual os autores misturam voluntariamente a ficção e a memória em variados graus, e sua origem mais aceita está justamente na literatura francesa, em 1977, quando o escritor Serge Doubrovsky publicou seu terceiro romance, Fils, dando tratamento de romance a episódios de sua própria vida.
Ao apresentar o livro, primeiro de uma série a que o autor se dedicaria nas décadas seguintes, Doubrovsky cunha o termo autoficção para declarar que seu interesse é outro que não o da autobiografia, uma narrativa normalmente linear de uma vida inteira, e sim estabelecer fios e conexões entre episódios biográficos usando para isso recursos de ficção. A autoficção gerou – e ainda gera – polêmica desde o início porque, para muitos, mesmo entre críticos e teóricos da literatura, tratava-se de um elaborado rótulo de marketing para algo que não trazia necessariamente tanta novidade assim, a não ser o fato de que, a diferença dos tradicionais “romances com chave de interpretação”, roman à clef, o autor usava seu próprio nome e muitas vezes o das pessoas que o cercavam em vez de disfarçar as situações por trás da ficção.
Esse ponto, contudo, já pode ser considerado uma quebra bastante significativa naquilo que ajudava a determinar a separação estrita entre romance e autobiografia – trazendo à baila uma reflexão bastante corrente na contemporaneidade: mesmo uma autobiografia não é necessariamente a verdade estrita de um evento, dado que o autor se dedica a editar, a apresentar sua versão e muitas vezes a defender seu próprio lado. Essa indistinção estabelecida pelas obras de Doubrovsky daria frutos e influenciaria tanto o panorama literário que sem ele é impossível pensar a obra de autores como J.M. Coetzee ou Karl Ove Knausgard, expoentes contemporâneos desse gênero.
Ernaux e a autoficção
O que leva Annie Ernaux a se manifestar contra o uso desse termo em particular para sua obra é que, diversamente de muitos de seus pares, como o próprio Knausgard, ela tem um olhar muito agudo para situar a própria vida no cruzamento do pessoal com o político. A ponto de ela própria nomear o tipo de literatura que faz como “autobiografia social”. Em O lugar, sua narrativa sobre a vida do pai é também um ajuste de contas consigo mesma, com o fato de que sua ascensão social por meio do estudo a contaminou com uma certa mentalidade burguesa que terminou por afastá-la um tanto do pai e a pensar nele com uma alguma vergonha, o que ela mesmo reconhece como uma forma vil de traição. Em O acontecimento, sua angústia juvenil diante da gravidez indesejada é também fruto de sua condição social como estudante desenraizada, vivendo numa cidade estranha, sem os recursos ou as conexões para resolver o assunto discretamente, algo que outras pessoas na mesma situação mas em uma classe social mais privilegiada teriam. A própria gravidez parece, a certo ponto, a pobreza endêmica de sua família caçando-a com algum atraso.
“Eu estabelecia confusamente uma ligação entre minha classe social de origem e o que estava acontecendo comigo. A primeira a fazer um curso superior numa família operária e de pequenos comerciantes, eu tinha escapado da fábrica e do balcão. Mas nem o vestibular nem a graduação em letras puderam alterar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia dentro de mim era, de certa maneira, o fracasso social.”
Ernaux vem sendo alvo de uma descoberta internacional recente. Suas obras ganharam novas traduções em vários países e filmes recentes foram realizados adaptando seus livros, entre eles o próprio O Acontecimento, em versão dirigida por Audrey Diwan com Anamaria Vartolomei no papel da escritora quanto jovem. Ela declara em seu livro, escrito, é bom lembrar, há mais de 20 anos, que decidiu escrever quando muitos já não consideravam útil que o livro surgisse, numa época em que os direitos reprodutivos das mulheres francesas eram garantidos por uma legislação mais aberta. Mas ela identifica que muito do seu sofrimento dos anos 1960 vinha do silêncio, e portanto o silêncio é algo a se combater mesmo que a recepção do livro encontre o vazio.
Assim, seu livro ganha novas ressonâncias num momento histórico de retrocesso internacional dos direitos legais das mulheres. O mais simbólico, no plano internacional, a derrubada do caso Roe vs Wade em 2022 como precedente para autorização do direito constitucional ao aborto legal nos Estados Unidos. Ou o recentíssimo momento em que a extrema direita nacional quase fez emplacar na legislação brasileira uma lei não apenas suspendendo a licença do aborto em caso do estupro como tornando a pena de um aborto ilegal mais grave do que a de um estuprador condenado. Annie Ernaux foi uma autora restrita a um nicho por mais de três décadas, mas sua redescoberta, culminando com a concessão do Prêmio Nobel em 2002, não poderia ter se dado em momento mais propício.
Ah, é também interessante notar como, muitas vezes associado a um rótulo que recebe críticas por ser uma mera escrita do ego, esse tipo de narrativa que Ernaux compõe com virtuosismo sereno e analítico em O acontecimento consegue provar que, sob qualquer vertente, a grande literatura sempre dialoga com o social, por mais que tenda a mergulhar nas aflições do indivíduo.
Foto da Capa: Divulgação.
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