Nascidos e nascidas antes de 1990 frequentemente se aborrecem com a quantidade de revisões necessárias na linguagem para, por vezes, serem considerados seres humanos (ou humanes) verdadeiramente dignos dessa alcunha. Parte desse aborrecimento é índole e certa obstinação de preconceitos. Contudo, também há uma grande parte de preguiça intelectual. Seguramente, se olharmos mais de perto, essas posturas não se deixam atomizar em explicações reduzidas como as inventariadas até aqui. O fato é que os diferentes preconceitos e, de um modo geral, o racismo e a LGBTfobia estão sobre a mesa brasileira. Ainda resta a pergunta sobre quem está sentado ao redor dela?
Há algum tempo, comentei em outro lugar sobre o caso do “antirracista nas horas vagas”. Tratava-se de uma observação arguta de um paciente negro atento às sutilezas discursivas de supostos apoiadores da luta antirracista. Essa pecha era a autodeclaração em um perfil de redes sociais de uma proeminente pessoa branca da sociedade porto-alegrense. Meu paciente me autorizou a pegar carona nesse “causo” contado no divã e colocá-lo num texto. Afinal, como disse lá naquela ocasião, o divã não é uma ilha. É que ele – o divã – reverbera e retumba tudo o que se passa na sociedade e na cultura. Ou, para falar em psicanalistês, no laço social.
Brevemente, por laço social entendemos nossos acordos e pactos, expressos discursivamente e em atos. Por falar em pactos, com Cida Bento aprendemos que a branquitude alimenta um bastante consistente e insidiosamente operante. É o pacto narcísico da branquitude. Parte desse pacto se manifesta no silêncio mantenedor de privilégios. Esse silêncio, nomeado, entre outres, pela poeta Tatiana Nascimento como “branquietude”.
Um exemplo? Temos! Triste e vergonhoso. No último dia 12, uma escritora negra que admiro imensamente – ademais como poetisa, psicanalista e pela pessoa que é – sentiu na pele o peso e o retumbar do silêncio desse pacto que privilegia alguns e mortifica outros tantos. É nossa pele alvo, como já disse Emicida, sendo alvejada pelo silêncio aterrador da branquitude. Era um dia de festa e reconhecimento para a literatura quando a escritora gaúcha Eliane Marques – premiada com o troféu Alcides Maya, pela Academia Rio-grandense de Letras, por seu livro Louças de Família (Autêntica Contemporânea) – escutou a fala intragável e racista do presidente da ARL, Airton Ortiz.
Uma vez mais, a ruptura e denúncia do pacto narcísico precisou partir da mulher negra, além disso, uma das laureadas, recebendo com uma mão o prêmio, enquanto ao restante do corpo cabia receber – obviamente, em silêncio – todo o escárnio e peso da fala racista. Ao não se calar, Eliane, mais do que protestar, denunciou o que já sabemos, a facilidade nos dias atuais para ser descolado e divertido nas redes sociais, usurpando a luta antirracista, caminhando lado a lado com o descompromisso e a covardia criminosa diante dos atos racistas cotidianos. Aquele que proferiu a fala racista já se retratou, mas o que dói mais é o silêncio pela conveniência da posição de manutenção dos privilégios brancos daqueles que lá estiveram, entre as quais, algumas poucas pessoas brancas com discernimento tiveram a decência de, ao menos, acompanhar o protesto da escritora.
Pd: Eliane, estou contigo. A tua fala me defende também. Te honro e te agradeço!
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Foto da Capa: Eliane Marques / Reprodução do Instagram @elianemarques.escritora