Retomo hoje o episódio CPF na Nota, divulgado pela Rádio Novelo no início deste ano. Para quem não se lembra, trata-se do podcast em que a escritora Vanessa Bárbara expõe o relacionamento abusivo que viveu com o sócio da editora Todavia. Já comentei sobre o tema antes, mas desta vez quero focar em um livro extraordinário que me remeteu ao apagamento vivido por Vanessa Bárbara e por tantas outras mulheres — um apagamento fruto de uma masculinidade tóxica profundamente enraizada em estruturas de poder e valores distorcidos.
No romance Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, Elvira Vigna (falecida em 2017) apresenta essa toxicidade na figura de um homem que, em uma relação assimétrica, transforma sua interlocutora em uma espectadora passiva de seus relatos de encontros com prostitutas. O espaço que ocupam — uma sala fechada, onde o calor do verão carioca intensifica a sensação de sufocamento — torna-se metáfora para uma dinâmica em que a voz masculina predomina e a feminina se restringe ao silêncio da escuta. A repetição das histórias que ele narra não é gratuita. Elas funcionam como uma reafirmação de poder, um exercício de dominação sutil que, sob o disfarce de confidência, reforça estereótipos de gênero. Ele se apresenta como o sujeito ativo, aquele que consome, enquanto as mulheres que menciona são reduzidas à condição de objetos de prazer, desprovidas de subjetividade própria. A protagonista, por sua vez, ocupa um papel dúbio: ao escutar, ela parece se posicionar como receptáculo da voz masculina, mas sua mente trabalha em silêncio, preenchendo as lacunas deixadas pelo discurso dele.
A obra de Elvira Vigna revela como a masculinidade tóxica pode se infiltrar nas relações cotidianas sem precisar recorrer à violência explícita. A toxicidade está na forma como o discurso do homem impõe sua versão dos fatos, na maneira como a mulher é relegada ao papel de ouvinte, e na sensação de que o poder circula de maneira desigual entre os gêneros. Ao estruturar a narrativa a partir desse jogo de forças, o romance desmonta essa lógica, expondo a fragilidade de um modelo masculino que precisa se reafirmar constantemente para não desmoronar.
A literatura de Vigna nos convida a refletir sobre como essas dinâmicas se repetem fora das páginas do livro. Quantas vezes as vozes femininas são silenciadas em reuniões de trabalho, em conversas de bar, em espaços onde a presença masculina se impõe como padrão? Quantas vezes a experiência das mulheres é reduzida a um pano de fundo para as narrativas dos homens?
Assim, o romance transcende a história individual dos protagonistas e se insere em um debate maior: a necessidade de romper com estruturas que sustentam a masculinidade tóxica, abrindo espaço para diálogos reais, onde as vozes femininas não apenas escutam, mas também falam — e são ouvidas.
É por isso que episódios como CPF na Nota são tão importantes. No podcast da Rádio Novelo, Vanessa Bárbara não apenas rompe o silêncio sobre sua experiência, mas evidencia como o apagamento das mulheres segue acontecendo em diferentes esferas — seja nos relacionamentos, no mercado editorial ou na própria recepção das denúncias de abuso. Sua voz, assim como a literatura de Elvira Vigna, nos lembra que contar essas histórias é essencial para desmantelar estruturas de poder que há séculos se perpetuam sem contestação. Se antes elas eram silenciadas, agora é tempo de falar — e de escutar atentamente.
Todos os textos de Andréia Schefer estão AQUI.
Foto da Capa: Elvira Vigna / Reprodução do YouTube