Nesse momento, pouco importa se a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul foi ou não responsabilidade da ação humana sobre o meio ambiente. Não vou entrar em discussão com negacionistas. O fato é que três eventos extremos ocorreram em menos de um ano e não estávamos preparados para nenhum deles.
É inquestionável: o bom senso foi desrespeitado. Tivessem os sistemas de proteção sido revisados (diques) e mantidos em perfeito estado de funcionamento (comportas e casa de bombas) as consequências teriam sido administráveis. Isso para a cidade que já tivesse algum sistema de proteção, claro. As demais deveriam ter ouvido Lutzenberger 50 anos atrás: “respeitem charcos e banhados, não ocupem várzeas inundáveis”.
A novidade é que pela primeira vez em muitas décadas a tragédia alcançou a todos indiscriminadamente. Para uma parte da população, por certo pobre, conviver com alagamentos faz parte da rotina quase anual. Há muito tempo.
Dessa vez foi diferente. O Centro Histórico afogado, nocauteado. A cidade isolada, sem rodovias de acesso, sem aeroporto. Empresas destruídas, bairros alagados, sem água potável, sem luz. Como reagir ao caos, planejar e reconstruir Porto Alegre diante de um futuro implacável?
Quando vejo o prefeito contratando a empresa de planejamento que causou uma segunda devastação em Nova Orleans, logo após a grande enchente, fico muito preocupado. Mais preocupado ainda quando soube que ele usou as dependências do Instituto Ling para falar de seus planos. Nada contra o Instituto, ele é ótimo enquanto instituição cultural! Mas faz sentido resumir a representação de toda a cidade a um grupo de empresários? Por que não um auditório público mais central?
A geografia do poder explica muita coisa. O prefeito pediu votos nas vilas, em frente às casas de bombas que prometeu cuidar – e não cuidou –, mas faz planos no bairro Três Figueiras, ao lado dos ricos condomínios murados. Quais serão seus planos?
Não sei, mas lembro da “solução” dada na enchente de 1941. Moradores foram removidos das áreas alagadiças. À força. Quem recusaria, na ditadura, a generosidade de caminhões do exército transportando famílias e pertences para a longínqua Restinga? Falo da Ilhota, bairro do samba de Porto Alegre, que teve sua área “limpa” para usos “mais nobres” exatamente como a Alvarez & Marsal planejou e executou em Nova Orleans.
A retificação do Arroio Dilúvio em forma de dique, em vez de proteger os moradores, abriu caminho para um projeto de gentrificação chamado CURA (Comunidade Urbana para Recuperação Acelerada). Não precisamos de um especialista para entender o ato falho desse nome… As consequências, além do desrespeito às famílias e suas histórias, foi o aumento vertiginoso do custo do transporte público e o espraiamento horizontal da cidade em direção à zona sul, num claro desperdício de infraestrutura de áreas mais centrais.
A ideia de apartar os moradores de sua geografia cotidiana para viverem provisoriamente no Porto Seco ou outros lugares distantes e isolados é o prenúncio dessa política de afastar os mais pobres. O prof. Fuão, da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, fez uma bela reflexão sobre o tema das Cidades Temporárias no Sul21. A população desabrigada precisa ser alojada próxima de seus lugares habituais de moradia e trabalho. Precisa manter seus laços cotidianos, precisa ter facilidade de locomoção, acesso ao emprego, serviços, compras, etc.
A comparação que se faz da enchente com uma guerra vem bem a propósito. O governador falou em Plano Marshall não por acaso. Ele e nós sabemos que o pós-guerra requer bilhões de reais para a reconstrução. A imprensa não se cansa de falar neles. Obras faraônicas estão no horizonte de empresas ambiciosas. Oportunidades de novos CURAs também.
A tragédia climática só não é melhor que a guerra para os negócios, porque essa exige bilhões em dobro: primeiro para destruir, depois para reconstruir. Um acordo de paz entre os homens e entre eles e a natureza não é nada lucrativo. Não gera riquezas, não aumenta o PIB dos privilegiados.
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Foto da Capa: Mauricio Tonetto / Secom
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