Atendendo aos apelos da memória, que esses tempos loucos trazem, vou para a segunda crônica dos anos 1980, outra que encontrei em uma pasta onde guardo textos antigos. Crônica ainda produzida em uma máquina de escrever Olivetti. Ainda nos tempos da ditadura militar no Brasil, que tanto me assombrou, e se encaminhava para o fim.
Crônica 2
E a mudança não chegou como sonhei
A noite avança inquietante. Talvez porque seja domingo e as ruas estão quase desertas. Faz frio e a cidade se recolheu cedo. Nem os bêbados cruzam na sua confusão de pernas em busca de um porto seguro. Nem os contumazes frequentadores dos bares da madrugada, em busca de um papo para disfarçar o medo e a solidão. A noite avança misteriosa. Quase sinistra no silêncio pesado das esquinas vazias.
Os poucos sinais de vida despontam de algumas janelas iluminadas e da minha respiração tensa, que nunca senti tão forte. Já é madrugada. Saio de uma reunião sindical e ando sozinha pelas ruas centrais da cidade. Cruzo esquinas e becos em direção à praça onde vou tomar o ônibus até o meu bairro. Atenta, espreitando os tantos espaços à minha volta, eu sigo. Medrosamente.
É um tempo de guerra. Surda, contida, dolorosa.
Não tem jeito! E eu tenho um grito preso na garganta, que esperava, se diluísse com a possibilidade de novos tempos. Mas não! Segue preso e quase me sufoca. E lá vem a lembrança da canção “Mamãe Coragem”, de Caetano Veloso – “eu tenho um beijo preso na garganta / eu tenho um jeito de quem não se espanta / eu tenho corações fora do peito / Mamãe não chore / Não tem jeito”. A música sempre me acompanhando.
A esperança ingênua alimentou em mim a certeza da mudança, mas os novos tempos chegaram velhos e corrompidos. Aninharam-se na mesma cama do poder prostituído e se encolheram diante do desafio de jogar o jogo da verdade e recomeçar fora dos alicerces que sustentavam a corrupção e a mediocridade.
A noite avança escura e triste. E eu caminho apreensiva, como se um batalhão de fantasmas me perseguisse. Não os fantasmas ingênuos das fantasias infantis. Os fantasmas da vida adulta, reais, que torturaram, censuraram, impediram a mudança como sonhei. E agora querem impedir que se questione, que se fale, que se diga não. E vejo esses fantasmas solidamente instalados na farsa que chamam de democracia.
A noite avança. E a manhã que não chega nunca!
Um pequeno comentário – Mal sabia eu naqueles anos de 1980 que enfrentaríamos um período político desumano e cruel como o que vivemos nos últimos quatro anos no Brasil – 1º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2022. Herança de Michel Temer, o vice de Dilma Rousseff em 2011 e 2015, aquele que articulou o impeachment. Só mesmo recorrendo ao poeta Carlos Drummond de Andrade – “Mundo, mundo, vasto mundo / Se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima / não seria uma solução. / Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração”. A poesia sempre me acompanhando.