Talvez os seis ou sete de vocês aí que me leem (obrigado por isso) não saibam, mas eu tenho um canal no YouTube chamado Admirável Mundo Livro (se quiserem conferir, o endereço é youtube.com/Admiravelmundolivro). Quando eu o criei, em agosto de 2020, uma das coisas que fiz em decorrência disso foi me inscrever em um bom número de grupos de discussão no Facebook nos quais eu poderia, eventualmente, fazer uma divulgação marota dos vídeos que havia publicado no canal. Talvez o que se seguiu fosse inevitável, dado que minha atividade em grupos de discussão de Facebook se resume a ser adicionado e quase nunca mais voltar lá (ao contrário da época do finado Orkut, em que eu me sentia mais estimulado a trocar ideias com os participantes de um ou outro grupo), mas a minha sensação ao monitorar esse tipo de fórum com mais atenção foi a de uma profunda perplexidade.
Para começar, finalmente eu compreendi em toda a sua magnitude desastrosa uma frase que já tinha ouvido aqui e ali sobre o quanto a linguagem do “meme” havia virado uma estrutura de argumentação e expressão ela própria. Em vez de gente propondo interpretações do que lera, o que se vê em grupos de Facebook de “discussão literária” têm muito pouco de discussão de fato e, quando a discussão acontece, quase nunca avança sobre qualquer assunto se possa chamar, mesmo generosamente, de literário.
Para começar, imagino que o memes cumpram hoje uma função que já foi a das listas de “melhores e piores” ao longo das últimas décadas e a das “trívias e curiosidades” nos anos 1990: a possibilidade de alguém dizer alguma coisa, qualquer coisa, sem compromisso com o discurso. E, claro, são eles próprios sintomas de um país em que mesmo os integrantes de um grupo de leitores parecem haver perdido a capacidade mais básica de organizar e debater um pensamento complexo ou sustentar uma opinião simples com um argumento mais elaborado do que “gosto é gosto”. Em vez de uma impressão sobre literatura, perguntas meio ingênuas para forçar interações, como “devo comprar um kindle?”, “cite aquele livro que está na sua estante há muito tempo e que você ainda não leu”, “Vocês levam livro na viagem mesmo sabendo que não ter tempo pra ler?”.
Hábitos
A maioria das interações nesse tipo de discussão é uma troca de experiências e de hábitos de leitura, mas raramente se vê ali algum insight sólido sobre o que a leitura provocou, o que um livro despertou no leitor. Quando as postagens são sobre livros específicos, elas normalmente seguem a tendência de passar a bola para o outro em vez de assumir a responsabilidade de emitir, olha que coisa perigosa, um juízo ou uma impressão: “e aí, gente? Tudo bem? O que vocês acham do livro X?”. Ou “Livro Y. Quem já leu comenta aí”.
Nesse tipo de ambiente, tenho sofrido alguns reveses sérios devido a meu estilo um pouco… opiniático e assertivo de discutir leituras ou experiências estéticas, com o qual vocês que leram algum dos meus textos neste espaço estão familiarizados (na hipótese otimista de que vocês aí já leram algum e não vieram parar aqui por acaso pesquisando alguma outra coisa). Mas como em muitos desses grupos, o que prevalece não é necessariamente má intenção, só uma certa insegurança intelectual generalizada pela qual as pessoas evitam dizer o que pensam, preferindo o engajamento das antigas correntes de caderno escolar, me mantive conectado à maioria desses grupos para fazer lá meu jabá eventual sobre meu cada vez mais raro vídeo postado no canal. Só desativei as notificações e voltei a interagir com esse tipo de grupo como eu costumava fazer desde o início: me esquecendo de que ele estava lá.
Há, no entanto, outro tipo de grupo em que o padrão hegemônico não é a falta de comprometimento, é a insistência em uma visão tributária da pura preguiça intelectual. Nesses eu também tentei por um tempo ser um observador silencioso, mas como a paciência infelizmente não é uma das minhas virtudes, em algum momento eu simplesmente me enchi e levei a coisa toda até o ponto de ser expulso.
Eu e os grupos
E com isso não quero dizer que baixo o nível ou apelo para os palavrões, não, não é o meu estilo em discussões por escrito (na maioria das vezes). Eu simplesmente apelo para algo que, tenho certeza, vai me custar o ostracismo em algum momento: uma combinação aguda entre argumentos e sarcasmo. Sempre chega um ponto em que, por completa falta de contra-argumentos, os caras me ejetam do grupo reclamando do sarcasmo.
Já aconteceu num grupo de música que era na verdade uma comunidade de gente oitentista cheia de saudade da própria juventude e que se recusava terminantemente a dedicar um pensamento mais cuidado que fosse a qualquer coisa contemporânea (aliás, quando o estereótipo do “roqueiro velho” ganha vida no mundo real, que coisa triste de se testemunhar). Já ocorreu também num grupo de cinema no qual ousei compartilhar um texto antigo em que eu comento o quanto, para uma obra que se vende como antiescravidão, o filme Django Livre, de Quentin Tarantino, parece defender de verdade o contrário na maneira como é montado e escrito. Como lá nesse grupo particular o cinema americano era quase o único cinema que a maioria tinha visto, fui xingado de pretensioso e de “lacrador” e expulso depois de um dia inteiro de ataques da turma (alguns respondi, outros não). Ocorreu o mesmo em outro grupo de “leitores” no qual apareceu o bom e velho “leitor só de clássicos” defendendo que nenhum livro contemporâneo presta, principalmente os da literatura brasileira, e eu meio que levei o cara a admitir que ele não tinha lido quase nada de literatura brasileira desde a morte do Erico Verissimo. Como, para meu azar, ele era um dos administradores, também fui ejetado.
Esse termo, aliás, “lacrador”, é sintomático de outra treta inútil na qual me meti esta semana em outro grupo, este de admiradores de ficção científica, para o qual entrei porque percebi que alguns escritores que eu respeito eram integrantes. Infelizmente, o que vi lá foi que o pessoal que eu respeito tratava o grupo mais ou menos como eu, entrou e se esqueceu. E quem mais se manifesta é uma turma estranhíssima em suas contradições: embora sejam todos ali supostamente admiradores de uma literatura que se dedica a mirar o futuro, a maioria é composta por uma patota reacionária ainda travada nos anos 1960 – se bobear, 1930.
Não pelo tipo de Ficção Científica que os caras admiram. Infelizmente, foram poucas as vezes em que alguém naquele grupo dedicou algum tipo de reflexão às obras de Isaac Asimov ou Ray Bradbury, por exemplo, ou outros autores clássicos da primeira metade do século XX. O pessoal está mais é preocupado com o fato de que Star Wars e Star Trek atualmente estão “na mão da turma da lacração”.
Argumento surrado
Esse argumento surrado da “lacração” que se tornou onipresente na boca dos leitores ou fãs reacionários é sintomático de um tipo de mentalidade bastante presente no atual momento político. Nascida no meio da cultura LGBT como uma expressão de aprovação entusiasmada, “lacrou”, em algum momento lá da década passada, começou a ser muito usado como o reconhecimento de que alguém havia dito “tudo o que era para ser dito” em um determinado debate e dali para a diante não adiantava ninguém mais falar nada. Essa mentalidade moldada pelas redes sociais e seus textos curtos e diretos tinha, muitas vezes, a intenção de interditar o discurso, e foi sim um fenômeno ao qual se entregou com afinco uma parte da esquerda digital – mas não tanto quanto se pensa.
Aí surge a chamada “nova direita”, essa onda reacionária que açambarcou e por vezes arrasou a antiga direita mais “tradicional” disputando não ideias, mas viralizações (já falei um pouco disso no meu texto sobre “a política da trollagem”, AQUI mesmo na Sler). E um dos elementos utilizados por esse movimento como forma de engajamento de seu público e disseminação viral de seu discurso é a criação dos chamados “espantalhos” que caricaturizavam as ideias do adversário para depois refutá-los em termos que nunca foram os originais. A chamada “ideologia de gênero”, por exemplo, é uma distorção mal-intencionada da já bem estabelecida “teoria queer”. Aliás, acho que a esquerda sempre erra quando tenta refutar o espantalho dizendo que ele não existe, como faz com a “ideologia de gênero”. Ok, ela não existe nesses termos, mas é uma perversão conceitual de algo que é mais complexo e que, sim, existe.
O mesmo ocorre com a “lacração”, uma espécie de reação desproporcional ao hábito da “problematização” – e nesse sentido, a substituição de um termo pelo outro no discurso público é sintomática. A problematização, além de ser uma palavra mais complicada, normalmente era usada pelos críticos reacionários como “ver um problema onde não tem”. Quando, na origem da palavra, estava a ideia de apontar um problema que está ali, mas, por comodidade ou interesse, a maioria se recusa a ver ou a aceitar que viu. A lacração, sua parente próxima, já nem se dedica a examinar o conteúdo, e sim a empacotar a coisa toda como uma tentativa de “impedir o discurso livre” (livre na retórica, porque o que vimos nos últimos quatro anos deixa claro que a mentalidade de gangue de boa parte da “nova direita” quer é um discurso livre apenas para suas barbaridades).
Daí que em mais uma postagem embolorada no tal grupo de ficção científica reclamando pela milésima vez de Star Wars e seu ímpeto “lacrador” sob o comando da Disney, lá fui eu ser de novo sarcástico e cheio de argumentos. E só para variar, o idiota reaça da vez é um dos administradores do grupo, e seus colegas que já demonstraram em outras ocasiões um beneplácito constrangedor com o discurso “antilacração” agora decidiram que eu poderia “ter apresentado os mesmos argumentos de outra forma” e que “minha ironia era desnecessária”. Então estou, por ora, numa geladeira temporária impedido de postar. O que não é um drama, mas vou ter que esperar mais um tempo para ser liberado e começar a postar de novo.
Assim, me parece de uma ingenuidade comovente quem acha que o debate com a onda reacionária atual é possível. Quando eles têm qualquer coisa parecida com um argumento, mesmo que copiado do zap, eles martelam sem cessar até te tirar do sério. Quando eles não têm argumentos e você os tira do sério, eles tiram você da conversa.
Eu poderia aproveitar agora e sair do grupo, mas não.
Vou insistir mais um pouco até que eles me expulsem.