Tive a oportunidade de visitar uma comunidade indígena dias atrás. Saí tocada, mexida. Por vários motivos. Senti na pele, pelos poros, observando o quanto estamos doentes. A serenidade deles perante a vida é algo paradoxalmente estonteante. Temos muito a aprender com os indígenas. E o pior: nossa visão de mundo antropocêntrica acha que só o jeito de viver em que estamos mergulhados é o “certo”, o que deveria continuar existindo.
Por ignorância, falta de sensibilidade, de percepção das infinitas possibilidades de se viver no mundo, muitas vezes emitimos opiniões, nos manifestamos, dando a entender que nós é que sabemos das coisas… Ridículo, insano, imoral. Esse pensamento está a serviço dos mecanismos que estão nos matando!
Nós, descendentes de europeus, fomos forjados com os valores que nos apartaram da natureza. Mais que isso: achamos que nós somos o centro do universo, que tudo deve estar a serviço das nossas vontades. Hoje vivemos cercados de necessidades que nos foram impostas e nós não queremos enxergar fora do cercado onde fomos colocados. Estamos sempre com pressa, com medo, oscilando entre a ansiedade e a distração, e nunca satisfeitos com os que temos.
A paz e a serenidade que senti em contato com aquelas pessoas me deixou com vontade de conviver mais com elas. Fui para fazer registros sobre o modo de vida em uma área que eles batizaram de Retomada, em Viamão, para um projeto que deverá ser concretizado no ano que vem. A ideia é mostrar a cosmovisão indígena guarani a partir do que eles querem contar.
Algumas situações me chamaram a atenção, como o jeito como as crianças são criadas. Um menino, de uns três anos, estava chorando muito forte. Fiquei pensando: será que se machucou, aconteceu alguma coisa? Logo veio uma mulher adulta caminhando e ele atrás, abrindo um berreiro. Ele ficou chorando mais alguns minutos sozinho. Ninguém deu atenção. Até que ele parou. Ele estava querendo pegar um celular e não deixaram. Ou seja, a forma deles lidarem com a frustração infantil é algo que me fez pensar. E se fosse com uma criança branca de classe média?
Como gosto de crianças, logo comecei a conversar e brincar com algumas. Elas são completamente destemidas. Tem total autonomia para brincar, entrar no mato e pegar animais. E falam guarani direto. Falam algumas palavras em português. Uma menina de uns 8, 9 anos me contou, faceira, que já sabia contar até 100 em português.
Vendo o modo de vida completamente despretensioso, livre e em plena comunhão com a natureza, comecei a me dar conta de como estamos presos a um emaranhado de redes, fios, tecituras de mecanismos de uma sociedade que está à beira do precipício. O aumento da temperatura global, que gera como consequência o aumento da frequência e da intensidade de eventos extremos, é apenas uma das faces perversas desse modo de desenvolvimento a qualquer preço.
Nossa visão antropocênica nos move, achando que eles são atrasados. Ledo engano. Claro que eles precisam de ajuda, ainda mais depois de tantos séculos de opressão, de extermínio e genocídio. A sabedoria de vida que eles têm, de respeito ao funcionamento dos ecossistemas, de saberem se relacionar sem gritar, sem hesitar, respeitando a coletividade e a reciprocidade, evidencia que nós é que somos inferiores, em muitos aspectos.
Por tudo isso e mais um pouco, recomendo o livro Futuro Ancestral, do Ailton Krenak. Eis um trecho das páginas 36 e 37:
No tal capitaloceno que estamos experimentando não restará nenhum lugar na Terra que não seja como o corpo desse rio, assolado pela lama (referindo-se ao Rio Doce, afetado pela barragem da Vale). Ela alcançará todos os recantos do planeta, assim como os polímeros e os microplásticos alcançam a barriga de cada peixe no oceano. Um especialista no assunto me disse que o microplástico viaja pelo nosso corpo e já pode ser encontrado nos bebês que estão nascendo. Achei isso escandaloso, mas não podemos nos render à narrativa de fim de mundo que tem nos assombrado, porque ela serve para nos fazer desistir dos nossos sonhos, e dentro dos nossos sonhos estão as memórias da terra e de nossos ancestrais.
Estamos vivendo num mundo onde somos obrigados a mergulhar profundamente na terra para sermos capazes de recriar mundos possíveis. Acontece que, nas narrativas de mundo onde só o humano age, essa centralidade silencia todas as outras presenças. Querem silenciar inclusive os encantados, reduzir a uma mímica isso que seria “espiritar”, suprimir a experiência do corpo em comunhão com a folha, com o líquen e com a água, com o vento e com o fogo, com tudo que ativa nossa potência transcendente e que suplanta a mediocridade a que o humano tem se reduzido. Para mim, isso chega a ser uma ofensa. Os humanos estão aceitando a humilhante condição de consumir a Terra. Os orixás, assim como nossos ancestrais indígenas e de outras tradições, instituíram mundos onde a gente pudesse experimentar a vida, cantar e dançar, mas parece que a vontade do capital é empobrecer a existência. O capitalismo quer um mundo triste e monótono em que operamos como robôs, e não podemos aceitar isso.
E aí fico indagando aos meus botões e dobras: esse sistema neoliberal do liberou geral tem a intenção de adoecer as pessoas para que elas comprem, consumam tudo que podem para se retroalimentar. E quanto menos espaços de qualidade de vida, com natureza e liberdade, melhor para esse mercado que gira em torno de doentes. Esse esquema gera lucro de todos os tipos à sociedade de risco. As indústrias farmacêuticas, as clínicas, hospitais e as incontáveis ofertas de soluções mágicas que fisgam clientes pelas redes sociais. A eterna insatisfação move a mente dos viventes para almejarem tudo rápido e com pouco esforço. Ficaram eternamente jovens, sem barriga, sem rugas, sem consciência.
Enquanto isso, a biodiversidade, os ambientes naturais da Amazônia, do Cerrado, do Pampa que se quer foram estudados (ainda tem muitas formas de vida que se quer foram descobertas) vão sendo destruídos em nome da expansão de monoculturas: da soja que vai virar ração de gato, cachorro, gado e de outros bichos em outro canto do mundo… e quanto mais pets, criações de animais, menos vida nativa; do eucalipto indispensável para a fabricação de celulose que será exportada ou que vai virar papel e descartáveis; do algodão para servir de base para roupas e estar a serviço da moda ditada pelos definidores de tendência; e de tantas outras formas de matérias-primas. Tudo para satisfazer alguns momentos efêmeros onde nossos desejos insaciáveis comandam nossos instintos, já que é isso que dá sentido a nossa existência. É isso mesmo, produção? Será que é por isso que querem acabar com quem tem outras formas de viver em comunhão com a natureza?
Clique aqui para conferir alguns registros que fiz na visita à comunidade e postei no meu Instagram @silmarcuzzo
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Fotos: Acervo da Autora.