O que envolve ir a um show em Porto Alegre? Ou melhor, o que significa ir a um espetáculo na Arena, que dizem que é do Grêmio, no bairro Humaitá? Mais específico ainda: o que requer conseguir chegar lá e voltar para casa? Faço essas indagações porque a ida e a volta ao magnífico show da Maria Bethânia e do Caetano Veloso me acendeu uma série de desconfortos.
Ter conseguido chegar ali, sem ter sido tocado pelo contexto, não é coisa para qualquer um. E se você acha que é exagero, é porque talvez você seja de uma ala que não se abala por determinados desafios de viver em uma grande capital que ainda expõe cicatrizes de uma enchente avassaladora.
Os obstáculos começaram antes mesmo de pegar o caminho ao estádio. Para conseguir comprar o ingresso, tive que fazer florescer em mim a bruta flor do querer de estar lá. Tinha certeza de que tinha comprado os ingressos em dezembro, mas ou minha memória me pregou uma peça ou algum problema aconteceu no site que não apareceu a compra. Chegou no dia do evento, tive que passar por uma romaria digital e ser obrigada a baixar um novo aplicativo para mostrar os tickets, exclusivamente digitais.
Conheço histórias de gente que comprou, não conseguiu localizar a entrada e perdeu o show. Ou que pagou mais, mas não recebeu por um site de venda de ingressos. E, quem pagou, já sabe que precisaria dispor de uma grana para outros gastos. Tudo lá dentro do estádio era caro. Para quem é acostumado, é normal. Uma água a 10 reais, o líquido mais barato. Esse é o preço e ninguém discute.
Alguma coisa aconteceu no meu coração quando pegamos um engarrafamento desde o túnel da Conceição. Conseguimos sair de casa um pouco antes das 19h. E muitos carros, boa parte de motoristas de aplicativo, estavam se encaminhando para o Humaitá.
O que não deu pra segurar, explodiu meu coração, foi ver de perto tanta gente em condições mega precárias na Vila Teodora. Nenhuma novidade. Isso já era realidade antes de as águas terem varrido aquelas pessoas de lá. Mas elas voltaram. Só que gente é pra brilhar, não para morrer de fome! Faces do Brasil desigual, mas alguma coisa aconteceu no meu coração. Sentimento de impotência.
Estava incomodada também porque estava indo de carro com lugares sobrando. Tentei agilizar caronas para amigas que iam, mas nenhuma deu certo. Como já estive em muitas situações na condição de caroneira, sempre penso naquelas pessoas que não têm como se deslocar. Em tempos de congestionamento e excesso de emissão de gases de efeito estufa, o uso racional de um veículo deveria ser uma preocupação pulsante de todos.
Na hora da chegada, deixamos o carro na rua e na via em direção ao sentido centro. Meu marido é acostumado a estacionar naquela região. Já ficou muito tempo trancado em estacionamento que foi pouco pensado em como seria o escoamento naquela região. Confesso que tenho saudade de shows no Olímpico. Ele garante que a comunidade do entorno se envolva para que nada aconteça com os veículos. Afinal, é uma possibilidade de renda excelente. E, ao contrário da região do Beira Rio, o pessoal que cuida dos carros é da própria comunidade. Cada família tem sua área definida, diferente do estádio do Inter em que os cuidadores não moram perto.
Estacionamos e chegou uma senhora, que parecia ter membros da família por perto. Uma filha e uma criança de mais ou menos um ano num carrinho. É 30, igual ao dia de jogo, disse ela. Não tínhamos trocado, demos 50 reais. E ela emendou: pode pegar o troco na volta, vou estar aqui.
Deixamos o carro tranquilos, fomos para o espetáculo. Nem vou gastar palavras para reforçar o quanto foi bom. Pagamos o valor mais em conta do ingresso, na zona da cadeira superior. Ficamos na fila P, bem em cima. E muitos lugares vagos ao redor. Deu para dançar, sentir a brisa que entrava pelas frestas e ainda ver o céu nublado da noite. Claro que adoraria ver mais perto, mas depois de uma certa idade, o conforto em momentos como esse é fundamental.
Antes mesmo de terminar o show, estava inconformada em voltar para casa sem dar carona para alguém. Tentei contato com uma amiga, convidei um casal de amigos que achei na multidão, mas eles estavam num grupo que alugou uma van. Aliás, é impressionante o que tinha de gente de fora da cidade para assistir aos filhos da dona Canô. Afinal, era a última apresentação de uma turnê. Caetano também tem manifestado vontade de parar de fazer empreitadas desse tipo.
Como sou mais que apreciadora, sou fã mesmo, do Caetano, tive o privilégio de vê-lo bem pertinho no finado Teatro da OSPA, interpretando as músicas do Circuladô (na época estava brigada com um namorado e ele chegou com os ingressos para ver o show…). Ter conseguido presenciar na Arena essa consagração à fé, ao sincretismo religioso, as homenagens ao Gil, à Gal e ouvir Gitâ, do Raul Seixas, cantada por esses dois monstros da música brasileira, foi um bálsamo para a alma.
Depois do show, segui incomodada em direção ao carro. Perguntava para as pessoas se queriam carona. Uma senhora perguntou se eu ia para Canoas. Bah, vou em direção oposta, lamentei. Chegamos no carro, localizamos a guardadora. Ela não tinha troco. Mas um moço da comunidade saiu correndo e foi atrás dos 20 reais. Voltou faceiro e nós nos despedimos. Saímos sem qualquer tranqueira.
No outro dia, fiquei sabendo de situações bem chatas que aconteceram com amigos. Uma vizinha só conseguiu um motorista de aplicativo por volta das 01h30. O show terminou pelas 23h. Ela precisou desembolsar 91 reais para vir até a rua 17 de junho, no Menino Deus.
Outro amigo ficou indignado com o trânsito: “Foi uma desorganização completa. A fiscalização da EPTC simplesmente observava, mas não atuava, tentando organizar e amenizar os tantos gargalos da saída do show, especialmente. Carros vindo de todos os lugares e os agentes sem nenhum tipo de atuação efetiva. Na ida, levamos 1h30 da rodoviária até o estacionamento da Arena, e isso tem pouco mais de cinco quilômetros. Saímos duas horas antes do show começar. O estacionamento externo da Arena também é caótico, todo centralizado numa entrada apenas. Lá dentro, iluminação superprecária e nenhuma placa de sinalização para as saídas. E tudo isso por um preço salgadíssimo de 60 reais.”
A oportunidade de ir a um espetáculo em um local de difícil acesso também proporciona aprendizados. Como já dizia o velho Chacrinha: “Quem não se comunica, se trumbica”. Vale muito pensar os meandros de antes e depois de um acontecimento como esse. Em tempos de alterações climáticas, precisamos exercitar cada vez mais a colaboração, a confiança entre nós, entre os amigos, entre vizinhos, entre conhecidos.
Pois, mesmo que uns vivam entre escombros e outros se deleitem em apresentações, estamos todos na mesma página. Vale lembrar os versos do Nelson Motta, eternizados na voz da Bethânia: você verá que mesmo assim, a história não tem fim, continua sempre que você responde sim. A sua imaginação. A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz não… e não esquecer, ninguém é o dono do universo, assim é maior o prazer.
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Foto da capa: Divulgação