Estar em dia com seus botões passa por admitir a cota de inveja cotidiana. A dos outros? Talvez também, mas, obviamente, me refiro àquela inveja que poucos se animam a admitir: a que acalentamos por alguém vez outra – ou vez em sempre, nos casos mais enfermiços.
É próprio da vaidade humana, não há escapatória. Sempre à espreita, há ou houve alguma invejinha para chamar de sua. E não adianta forçar a barra com aquela expressão boba – e, além de tudo, racista – da inveja branca, como se fosse uma modalidade branda ou etérea. Inveja dói e é fedorenta mesmo, como cheiro de braço mal lavado. Além disso, sempre é projetiva, ligada ao olhar. Em todo o caso, há atenuantes para este pecado capital tão explorado pelo outro capital. Assim quero crer.
A raiz da palavra, como sabemos, passa pelo olho, a palavra latina invidia, aquele olhar com desagrado, olhar mal e mau-olhado. Há uma parte que nega o que vê, como mostra a partícula “in” do in videre. O invejoso não vê, mas, ainda assim, fixa esse olhar muito precário, quer sobre si, quer sobre o invejado ou invejada da vez. Desconhece assim que, em bom ângulo, a humanidade de cada qual dispara a lembrança de que somos todos feitas e feitos do mesmo barro quebradiço.
Com isso, não se trata de convocar uma solução fácil, e dizer levianamente que a grama do vizinho nunca é mais verde… Há vezes em que de fato essa grama é tão vistosa que deixa o nosso gramado com cara de várzea depois da chuva. E está tudo bem, não vamos entrar em uma distorção do olhar apenas pela esquiva de uma inveja atordoante. A psicanálise pode até ajudar pelo trabalho que realiza em relação às modalidades do olhar, como uma das vertentes pulsionais. Em todo caso, para aquelas e aqueles que vieram com o DNA da admiração, talvez o caminho seja mais curto e menos doloroso. Digo isso calculando o pieguismo, mas é que o mirar do admirar é incontornável para uma psicanalista lacaniana. Um novo giro de olhar é capaz de abrir espaço para a admiração quando é possível sair da posição de inveja – uma posição de autoexclusão – para um deslocamento em poder se sentir congratulado/a com o talento alheio, e não afrontado/a.
Nessa toada, um possível enunciado de alguém na posição de inveja para o invejado seria: Invejo-te, porque, paradoxalmente, é difícil para mim te olhar, mirar, admirar. Invejo-te, porque é difícil olhar minhas próprias qualidades. No entanto, entre o invejoso e o admirador, há algo mais em comum: o olhar na mesma direção. Contudo, o segundo está mais perto de lançar-se nesse horizonte como desejo, enquanto o primeiro empreende inércia ou destruição.
Não foi nada disso que escrevi quando atendi o convite de Helena Terra para escrever na coletânea Inveja, cujo lançamento será no próximo sábado em Porto Alegre. Enfim, ali é outra história, ainda outro olhar.
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Foto da Capa: Gerada por IA.