“Quem interroga o Brasil, adentra mata fechada”, foi isso o que me disse, alguns anos atrás, Ana Laura. Isso foi bem antes de Bruno e Dom; antes de Maxciel, Joane, Márcia e José Gomes. Mas foi depois de Chico Mendes, Irmã Dorothy e de Maria do Espírito Santo. A lista poderia seguir indefinidamente se fôssemos bons de lembrança aqui no Brasil. Acontece que esquecer, por certo, é parte crucial de um projeto em curso. E a memória é uma capacidade que exige não só volição ou competência individuais, mas o esforço implicado de toda uma sociedade em torno dela.
Enquanto escrevo, Ana Laura está em Belém, no Pará. Talvez esteja dançando um tecnobrega depois de um animado carimbó. Também é possível que Ana esteja, agora, comprando um tônico ou uma água de cheiro preparadas por uma sábia erveira do mercado municipal: porangaba, damiana, jurema, losna. Algum elixir que poderia muito bem ser a panaceia brasileira, embora também precisemos de remédios seculares. Talvez ela esteja entrevistando um ribeirinho que, com sorte, ainda vive em um formoso igarapé banhado pelas águas do Xingu e cuja felicidade, porventura esquisita para nós que moramos empilhados em cidades irreais, mede-se simplesmente pela vista privilegiada de sua palafita e pelo vento fresco que lhe deixa dormir tranquilo, em sua rede, sem o impertinente barulho de um ar-condicionado nas noites quentes e úmidas do verão da mata amazônica. Talvez Ana entreviste um outro ribeirinho que, menos afortunado que o primeiro, hoje vive o trágico desterro de um reassentamento urbano coletivo após a grande inundação desenvolvimentista. Talvez ela visite Altamira, que Eliane Brum recentemente definiu em seu Banzeiro Òkòtó (2021) como “ruína e vanguarda do mundo”, e veja de que modo se concretiza essa contradição viva e pulsante que os nossos comportados manuais de lógica certamente recusariam como um erro formal do pensamento humano. Não é algo incrível isso? Que o Brasil desafie até mesmo a própria lógica?
Por um lado, temo que Ana entre na mata fechada e nela encontre algum perigoso desassossego. Por outro, contudo, admiro sua resoluta coragem e reconheço que é precisamente se desassossegando que sua viagem poderá ganhar o mais elevado sentido. É diante dele que está o ponto de não retorno. Ou seja, para quem ousou ultrapassar a marca na terra dividida pela cerca viva de troncos e folhas, ele é o ponto a partir do qual não se poderá mais voltar a enxergar as coisas como antes. É nesse ponto que infelizmente aquela elegante metáfora de Ana – “quem interroga o Brasil, adentra mata fechada” – transforma-se numa pobre metonímia. Pois hoje pensar o Brasil significa, sobretudo, abdicar das pitorescas fantasias em torno das quais construímos a ideia distorcida de um país edênico, alvissareiro, abençoado pela Divina Providência e onde todos, sem exceção, convivem pacificamente e sem violência. Há, na abdicação dessa fantasia, um resto, uma sobra representada pelo real que ali, em seu lugar, permanece habitando insidiosamente a mata fechada. Ele é a ruína civilizatória dos assassinatos políticos, o descalabro da devastação ambiental, a ignomínia humana diante do que se desconhece e, por isso, se despreza. Contudo, é imprescindível reconhecer que sobre a dureza dessa realidade também se poderão tecer simbolicamente utopias possíveis – seja na vanguarda da resistência, na custosa preservação da lembrança e na coragem de quem expõe seu corpo e dá sua palavra para garantir ao outro o direito que lhe foi cerceado.
Antes de viajar para Belém, Ana e eu visitamos a exposição de Guilherme Dable no MARGS (Porto Alegre, RS), chamada Não um tempo, mas um lugar. Enquanto Ana percorria intrigada a exposição, eu parei diante de o samba ainda não chegou – uma instalação feita pela primeira vez em 2016, em Londres, e agora reexibida na sua primeira exposição individual no museu porto-alegrense. o samba ainda não chegou (2016-2022) também é uma forma singular de interrogação sobre o Brasil, ainda que ao seu modo – que é como as coisas devem mesmo ser, sempre ao modo de cada um de nós. Nessa instalação, a interrogação de Dable sobre o Brasil não se faz através de perguntas formuladas em palavras, teorias ou discursos, mas através de desenhos de folhas e azulejos recortados e selváticamente dispostos. Grande, a instalação ocupa boa parte de uma das paredes, cobrindo-a quase que do chão ao teto e abarcando um canto à esquerda de quem entra na sala. Quando vi pessoalmente o trabalho de Dable, senti-me profundamente tocado por ele. Nele vi, primeiro, os azulejos antigos como os que ainda existem no meu apartamento, em um prédio antigo do final dos anos setenta. E depois, sobretudo, vi em seu trabalho uma inquietação sempre presente nas minhas conversas com Ana. Uma inquietação sobre ser brasileiro e sobre herdar, para nosso infortúnio, um imaginário mítico capaz de, como todo mito, distorcer a realidade ao nosso redor com peculiar eficácia. Diante de o samba ainda não chegou (2016-2022), lembrei-me também dos coqueiros sussurrantes de Machado de Assis que, farfalhando suas longas e finas folhas, contam-nos de um modo singelo sobre as verdades antigas ainda muito presentes nos dias de hoje: “Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si […]. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros” (Machado de Assis, Dom Casmurro, 1999, p. 32 e 33).
As folhas selváticas de Dable me falavam da terra que “em plantando, tudo dá”; isto é, da inauguração de uma das muitas versões do conhecido mito brasileiro anunciado, primeiro, na glosa edênica de Pero Vaz de Caminha quando escreveu sua missiva para D. Manuel, em 01 de março de 1500. Aquelas folhas me falavam também que, desse encômio sobre a terra nova presente no marco colonial brasileiro, seguem se emaranhando outras tantas novas dobras míticas através de transmissões transgeracionais. E elas, por sua vez, igualmente seguem escondendo a realidade de um país violento e autoritário desde sua função sob a edulcorada miragem da “visão do paraíso” – conforme eternizou Sério Buarque de Holanda no título de seu famoso livro. As folhas me falavam ainda de sua melancolia estóica, firme e imorredoura capaz de quase esconder, decididas, o intrigante fundo de azulejos de onde parecem brotar. Se eles foram uma importante herança da cultura lusitana nas artes e artesanias brasileiras do período colonial, então também foram, muitos anos mais tarde, eternizados como sendo brasileiros por direito pelo modernismo chique e geométrico de Athos Bulcão que deglutiu com aquela voracidade antropofágica instrumentalizada como método pela Semana de 22. Contudo, escondendo aqueles azulejos, ou filtrando-os sob a sugestão de um estereótipo mítico sobre o Brasil, as folhas de costelas de Adão (!), de palmeiras e visgos da instalação de Dable igualmente me faziam lembrar dos azulejos kitsch das cozinhas brasileiras. Seus conhecidos motivos de abundância literal (cestas de frutas, cornucópias, banquetes e flores) ou simbólica (arabescos, ornamentos e padrões ibéricos) são usualmente reservados às cozinhas nas casas brasileiras, onde se avizinham, portanto, das conhecidas “áreas de serviço” com suas entradas sigilosas e furtivas e seus minúsculos e asfixiantes quartos de empregada. Aí estão, portanto, como que guarnecidos pela arquitetura brasileira nova e antiga aqueles indícios sugestivos de que o racismo estruturante segue fundando um imaginário branco sobre senzalas contemporâneas.
Talvez alguns dirão que vejo coisas demais na instalação de Dable. E é preciso responder a essa objeção. É possível que o artista não tenha intencionado tudo isso com suas folhas cinza-esverdeadas sob azulejos. Ainda assim, ele é um artista brasileiro cujas intenções mais conscientes estão – como também estão em todos nós, brasileiros – firmemente costuradas na linha de sutura de um imaginário sempre pronto a emergir, ainda que cifrado, fazendo-nos enxergar o mundo ao nosso redor a partir do filtro dessas recalcitrantes imagens advindas das fantasias brasileiras mais originárias. Intenções, de modo geral, não surgem do nada, mas são subprodutos mentais da situação social e do contexto cultural em que vivemos e nos quais aprendemos. Portanto, nossas intenções e pensamentos são diretamente nuançados pelos mitos que circulam discursivamente em nossos contextos e que internalizamos desavisadamente, como se pega uma gripe cujo vírus flutua no ar de uma esquina qualquer. Gostamos de pensar, por um peculiar apreço filosófico, que somos unidades individuais autônomas, autocentradas, internamente bem estruturadas e subjetivamente isoladas, quando, na verdade, somos espécies de complexos rizomas – seres porosos e integrados ao mundo, aos outros corpos e outras mentes. São esses discursos e crenças em livre comércio contextual que, dada nossa porosidade subjetiva, consolidam em nós um imaginário social matizado por elementos míticos – o do Brasil edênico, paradisíaco, pacífico; terra abençoada por Deus e linda por natureza. Esse imaginário, porque se replica entre nós e circula contextualmente, também mantém sua eterna atualidade, ganhando novas roupagens de geração em geração e se aplicando sob novas condições, falseando-as indelevelmente.
Diante disso, o fato de Dable ter intitulado sua instalação de o samba ainda não chegou (2016-2022) não é apenas um perspicaz intertexto com a canção de Caetano Veloso. Mas é uma ponderação crítica sobre o atraso brasileiro na realização de sua soberania nacional através da inscrição de uma utopia no horizonte possível da ampliação dos direitos sociais e do aperfeiçoamento democrático, como também na sua conhecida inclinação pelo sempre novo e pelo fazer de novo diante das ruínas daquilo que, ainda ontem, era novo; mas, agora, diante de um novíssimo novo, virou velho. A demora brasileira ali problematizada não se poderá medir unicamente pelo não-realizado – “ainda não…” – mas também porque “aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína” (conforme escreveu Caetano em outra música). Há sim, portanto, na instalação de Dable uma interrogação corajosa sobre o Brasil, ainda que sutilmente escondida na latência simbólica do desenho, sob as tensões entre figurativo e não-figurativo, e sob as prerrogativas artísticas de uma pintura contemporânea que se insiste como tautologia. Há, ali, um Brasil em vias de reflexão por meio da arte. Há, ali, um pensamento ao nível conceitual sobre o Brasil se fazendo em papel, tinta acrílica, nanquim e cola.
Interrogar o Brasil é como ingressar na mata densa porque ambas ações requerem coragem, mas uma coragem cuidadosa, diligente de si, atenta aos seus próprios subterfúgios imaginários. Refletir sobre o Brasil atualmente é uma necessidade existencial que demanda de nós o abandono daquelas ingenuidades familiares que nos condicionaram a ver nosso próprio país por meio do filtro das pitorescas imagens. Que, no lugar delas, encontremos a visão crua do real diante da morte, da violência, da opressão e da devastação, esse é preço que pagaremos para interrogar nosso próprio país. Sua crueza, no entanto, deverá, por sua vez, convocar um projeto; um projeto de luta política, de aperfeiçoamento civilizatório, de pensamento e coragem intelectual e de produção da arte.