Música de concerto sempre teve o dom de fazer minha mente voar. Ainda estudante, resolvia os exercícios de projetos de arquitetura na plateia do Salão de Atos da UFRGS, então sede da OSPA. Toda terça-feira, religiosamente, a poucos passos da Faculdade de Arquitetura, lá estava eu atrás do maestro Pablo Komlós. Sem papel e lápis, corro em dizer antes que me vejam como um ouvinte displicente. Não, era um processo cerebral, talvez fosse o inconsciente se sentindo à vontade para trazer à superfície suas angústias de criação. Até hoje preciso da música, de algum tipo específico de música, para encontrar respostas a perguntas que só descubro que as estava fazendo depois que encontro suas respostas.
Em um dos últimos concertos que fui, não foi um projeto que me veio à mente. Viajei nas especificidades da arquitetura. Em quanto ela é abstrata e, por isso mesmo, de difícil apreensão. Extasiado com a música que saía do piano pelos dedos ligeiros de Ney Fialcow, comecei a ver, não teclas de marfim, mas formas, cores, texturas, cheiros, densidades e tantas outras propriedades que os materiais oferecem para a arte dos arquitetos. É desse teclado mágico, oferecido pelos fornecedores de materiais de construção, que extraímos nossa arte.
Tão imaterial quanto a música, que não está nas teclas ou nas cordas do piano, é a arquitetura que sai dos materiais. Se ela não está nos materiais, onde está, então, a arquitetura? Cabe a pergunta que provoquei, mas a resposta é tão insondável quanto a resposta para a pergunta onde está a música? Nas ondas sonoras, nos ouvidos, no cérebro? E na poesia ou literatura, seria encontrada em seus tipos gráficos?
Arte não tem materialidade, esse é o seu encanto. A arquitetura, assim como a pintura, escultura, a dança ou qualquer arte não se pode pegar. O que se pode manusear, quando existe, é seu suporte: um pedaço de mármore, uma tela com tinta, um papel impresso, paredes e teto. É o que acontece também com a arquitetura.
Nos museus, por hábito, diante de uma obra que não nos afeta ficamos distraídos com suas características físicas, autoria, datas e outras informações. Um pouco como acontece com um novo conhecido que não temos empatia imediata. Observamos, fazemos perguntas objetivas em busca de razões nada objetivas para que se crie afeto ou não. Às vezes, obras de arte despertam afeição, às vezes não.
Quando somos de fato envolvidos pela obra de arte, desaparece quase que imediatamente a necessidade de entendê-la fisicamente, ainda que quanto mais sabemos do autor, do seu fazer artístico e do contexto da produção, mais apreciamos sua obra. E se entendemos das questões intrínsecas de sua arte mais podemos admirar ou não sua capacidade de tê-la produzido.
No exemplo da relação entre humanos, se dá o mesmo. A empatia pode crescer à medida que o conhecimento sobre o outro se aprofunda. Mais ainda se conhecermos o contexto onde vive e as interações que tem com ele.
Ao som do Quinteto com Clarinete de Mozart, dessa vez no Spotify, finalmente encontrei a resposta à pergunta que não tinha feito: porque comecei a escrever tudo isso? É que passamos a viver em um mundo com muita construção e pouca arquitetura e eu queria expressar a diferença entre uma coisa e outra. Me incomoda ver como o mercado transferiu para os materiais (as teclas do piano da minha argumentação) o valor da arquitetura. Não. A arquitetura não está no brilho ou riqueza de seus materiais por mais que possamos admirá-los caso a caso. Arquitetura se absorve com os sentidos do corpo pela quantidade e cor da luz que nos toca, pelo ar, acústica, cheiros, texturas e associações conscientes ou não com outras vivências espaciais, principalmente emocionais e afetivas. A arquitetura é importante demais para morrer na forma de construções bem resolvidas.
Arquitetura é feita por arquitetos. Se você souber dizer o nome do arquiteto que projetou o edifício onde você mora, ainda resta uma esperança… mas é mais fácil você saber o nome da construtora… Triste inversão que sepulta uma arte. Gombrich escreveu: não existe arte sem artistas.
Para deixar mais clara a diferença entre arquitetura e construção, vou me socorrer da lucidez genial do arquiteto Lucio Costa, autor de Brasília:
“Enquanto satisfaz apenas às exigências técnicas e funcionais —não é ainda arquitetura; quando se perde em intenções meramente decorativas — tudo não passa de cenografia; mas quando — popular ou erudita — aquele que a ideou, para e hesita, ante a simples escolha de um espaçamento de pilar ou da relação entre a altura e largura de um vão, e se detém na procura obstinada da justa medida entre cheios e vazios, na fixação dos volumes e subordinação deles a uma lei, e se demora atento ao jogo dos materiais e seu valor expressivo — quando tudo isto vai pouco a pouco somando, obedecendo aos mais severos preceitos técnicos e funcionais, mas, também, àquela intenção superior que seleciona, coordena e orienta em determinado sentido toda essa massa confusa e contraditória de detalhes, transmitindo assim ao conjunto, ritmo, expressão, unidade e clareza — o que confere à obra o seu caráter de permanência: isto sim — é arquitetura.”
Foto da Capa: Parque Guinle, de Lúcio Costa