“Arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes sob a luz”, escreveu Le Corbusier.
Também pintor, bebia na fonte do cubismo, neoplasticismo e outros ismos que trocavam a reprodução da figura pela liberdade de criação das formas. Com o manifesto de 1923 queria libertar também a arquitetura do figurativismo. Adolf Loss e outros já tinham feito discursos semelhantes, mas ninguém tinha a força da palavra de Corbusier.
O figurativo, no caso da arquitetura, significava a aplicação de relevos decorativos nas fachadas dos edifícios a partir de reproduções, mais ou menos fiéis, de modelos históricos. O século XIX não tinha uma arquitetura para chamar de sua. Ou, por outra, tinha, mas era por tabela: a acadêmica, focada no tema greco-romano. E era rígida quanto a isso. Fora dela, arquitetos mais desprendidos passaram a copiar outros modelos, principalmente o gótico. Outros, mais ousados, passaram a misturar todos eles, dando origem ao eclético. Uma verdadeira salada histórica.
A Revolução Industrial demandava soluções arquitetônicas inovadoras para as cidades. Os engenheiros, mais afeitos às novas tecnologias, se encarregaram de resolver os projetos dos novos programas como estações ferroviárias, mercados e outros edifícios que precisavam ser inventados. Os arquitetos, alheios ao que estava acontecendo, ficaram com a tarefa de embelezar as fachadas e saguões desses edifícios de acordo com os cânones da época.
Corbusier percebeu esse descompasso entre técnica e estética e criou a base teórica para uma revolução no modo de fazer arquitetura e cidades. Era inescapável mudar o modo de fazê-las. A disponibilidade de novos materiais e técnicas construtivas à disposição dos arquitetos passou a ser impressionante. Hoje, mais ainda, com o auxílio de softwares para o desenvolvimento dos projetos e sua construção. A arquitetura abstrata vinha para ficar.
Dono de uma verve messiânica, Corbusier propunha “uma nova arquitetura para um novo tempo”. Imaginou edifícios isolados (os volumes) plantados em um jardim contínuo cortado por vias de trânsito de alta velocidade. Era chegada a hora, na visão dele, de superar a promiscuidade do que ele mesmo batizou de “rua corredor” (nossas deliciosas ruas com suas lojas, calçadas e tudo o mais). Suas ideias urbanísticas talvez fizessem sentido em mundo que estava tão desgostoso de si mesmo, que explodiu em duas guerras mundiais, mas eram um despropósito para as cidades existentes. Ou mesmo, como mostra Paulo Bicca em Vazios Urbanos, como projeto para as novas.
Essa arquitetura que se queria purista, não figurativa, aos poucos foi incorporando novos elementos na composição de suas fachadas – com importante contribuição de arquitetos brasileiros. A Escola Carioca, numa adequação aos trópicos, introduziu o uso de brise-soleils (elementos sombreadores de fachadas), cobogós e logo texturas, cores, murais e outros elementos que a tornaram mais interessante do que o purismo branco da proposta corbusiana. Não há como não admirar a variedade de soluções para as fachadas dos projetos de Lucio Costa no Parque Guinle ou Oscar Niemeyer na Pampulha. O próprio Corbusier não foi mais o mesmo depois da convivência com Niemeyer nos projetos do Palácio Capanema no Rio de Janeiro e da Sede da ONU em Nova Iorque.
Por outro lado, não tinha sentido querer transformar nossas cidades naquilo que não são: um solo contínuo, coletivo, pontuado de edifícios isolados uns dos outros. Mas foi isso o que aconteceu. Pior: sem a coletivização do solo. Edifícios construídos como objetos autônomos, como se fossem únicos, muito próximos uns dos outros em terrenos pequenos e cercados. A cidade paliteiro.
Mestres da arquitetura, que beberam na fonte corbusiana, tiveram discernimento na hora de projetar na cidade. Projetaram seus “volumes” respeitando o lugar. Observem, por exemplo, a adequação, o encaixe no quarteirão histórico de Nova Iorque, do Museu Whitney de Arte Americana. Em São Paulo, tiro o chapéu para o conjunto de edifícios que se tocam – ou se cumprimentam? – no centro novo (já antigo): o Copan, projeto de Oscar Niemeyer, o Terraço Itália, de Franz Heep e um outro, de Oswaldo Bratke, que não sei o nome. Uma aula de mestres. E o que dizer do Conjunto Nacional, de David Libeskind, na Av. Paulista? Cada um, e muitos outros, projetados dentro dos princípios da arquitetura moderna, mas perfeitamente “encaixados” uns com os outros e com o quarteirão tradicional e suas calçadas. Arquitetura moderna da mais alta qualidade inserida na cidade tradicional. Um deleite.
Onde foi parar o ensinamento desses mestres? Por que a vontade de apagar a cidade histórica acabou por predominar tão fortemente nas mentes do planejamento urbano brasileiro? Por que nos agarramos ao delírio corbusiano e não aos seus bons ensinamentos? Vejo tantos edifícios projetados como se não houvesse um vizinho, uma rua à sua frente, uma cidade o esperando. Mostram-se senhores de si mesmos, autônomos e únicos como se plantados num jardim só deles — o que de fato acontece pela presença de cercas e forte segurança.
A sociedade narcísica talvez não pudesse aceitar outra forma de fazer cidades que não a soma de individualidades exacerbadas. Nesse sentido, temos que reconhecer, ela está em dia com seu tempo. Pena que o resultado seja em aço e concreto e não fugaz como as postagens do Instagram.
Foto da Capa: Reprodução do Instagram
Mais textos de Flávio Kiefer: Leia Aqui.