Já ouviu ou leu algo sobre a construção de um porto em Arroio do Sal? Pois fiz uma pergunta sobre esse empreendimento no Fórum Internacional de Meio Ambiente (Fima), promovido pela Associação Riograndense de Imprensa (ARI), semanas atrás, ao professor e glaciologista da UFRGS Jefferson Cardia Simões. A resposta dele, um cientista renomado que coordenou a expedição de circunavegação na Antártica recentemente, gerou várias interpretações. Coloquei no meu canal do YouTube a pergunta, a resposta e a observação feita pela superintendente do Ibama no Rio Grande do Sul, Diara Sartori. (Confira aqui)
Está rolando muita desinformação (notícias que apresentam dados com mentiras que mais confundem do que informam) sobre vários aspectos envolvendo esse projeto. A intenção desse texto é uma tentativa para dar uma clareada em como funciona o processo que envolve a análise desse negócio ou qualquer outro que precise de licenciamento ambiental.
O primeiríssimo lugar está nas características da região em que será afetada. Afinal, quando vamos escolher uma roupa para sair, consideramos onde vamos pisar. Será de salto ou de bota de borracha?
No caso do Litoral Norte, há várias condições que indicam ser muito arriscado tanto sob o ponto de vista do impacto socioambiental quanto econômico da região. A começar porque nossa costa não conta com enseadas. Não apresenta uma configuração natural para ter uma zona portuária.
Venisse Schossler, doutora em Geologia Marinha e climatologista, explica que a nossa área costeira é muito instável. São ambientes muito dinâmicos, onde a água, a terra e o ar têm grande interação. A professora do Departamento de Geografia da UFRGS explica que a nossa costa é muito suscetível à dinâmica dos sedimentos (areia), à ação forte das ondas e das correntes que são carregadas de energia devido aos ventos Minuano e Nordestão. Esses fatores contribuem para que a área mude muito rápido, em questão de horas.
Essa situação é bem diferente em uma praia com costões rochosos, exemplifica a professora. Mas o que ela mais alerta é que a construção de um porto e toda a infraestrutura que isso envolve trará consequências desastrosas para o Litoral. O turismo sofrerá muito com essa obra, segundo a pesquisadora.
Os impactos da construção e depois da operação de um porto irão afastar as pessoas que utilizam a região para veranear. Venisse conta que ouviu um empreendedor de pequeno porte dizer que estava pensando em comprar terrenos em Arroio do Sal para enriquecer. “Mas eu nunca vi uma cidade portuária ser rica”, disse pra ele, “vais ficar embuchado com esse terreno, porque ninguém vai querer morar lá em breve”, sentenciou.
Fora essa questão das condições do litoral, o vai e vem de embarcações também traz riscos como a invasão de espécies exóticas que ficam na água de lastro dos navios. Venisse acrescenta que isso pode acabar com a pesca se alguma espécie invasora se adaptar. Além disso, tem ainda a poluição pelo óleo dos navios e pelo aumento da urbanização sem esgoto.
Mobilização da Sociedade
Essa possibilidade de obra é de interesse de empresários, principalmente da Serra Gaúcha. É claro que seria conveniente encurtar distâncias para o escoamento da produção. Só que, assim como Venisse, diversos conhecedores do funcionamento dos ecossistemas costeiros, ambientalistas e representantes de organizações da sociedade civil são contrários à ideia devido a outros fatores, além desses levantados por ela.
O Movimento Unificado em Defesa do Litoral Norte elaborou um documento elencando uma série de riscos que se corre, caso se insista na construção da infraestrutura que um porto exige. Entre os apontamentos estão a perda de habitat de espécies nativas, os prejuízos à qualidade de vida para quem veraneia e optou por morar na região e a desordem social que pode provocar a transformação dos municípios com a movimentação de cargas e gente de várias partes do mundo.
Da Serra à planície
Nosso litoral tem dunas, campos, banhados, constituindo ambientes supersensíveis, com lençol freático próximo da superfície. Os campos de dunas são importantes para a retenção de água.
O acesso ao nosso litoral se dá por rodovias que também estão em ambientes supersensíveis. A estrada batizada de Rota do Sol, por onde querem que seja escoado o trânsito de caminhões rumo ao porto, está localizada em uma área de alta declividade e que frequentemente tem queda de barreira. Demorou muito tempo para ser feita porque os ambientes por onde ela passa são cheios de peculiaridades, como nascentes, matas preservadas, corredores de vida silvestre, entre outras características. E, para ser concluída, o órgão ambiental, no caso a Fepam, precisou intervir em vários aspectos.
Só que hoje, estamos vivendo um momento de profundas alterações no clima. E o Rio Grande do Sul está localizado numa zona que tem se confirmado como de alta incidência de eventos extremos. Estão mais frequentes e intensas as chuvas, os temporais, os ciclones. E o litoral é um dos lugares onde isso tem acontecido.
Depois dessa brevíssima explicação, creio que dê para entender melhor o quão prejudicial é veículos de comunicação anunciarem que é certa a construção do tal porto. Pois há muitas variáveis que precisam ser estudadas e pesquisadas para se chegar a uma conclusão se o empreendimento é viável ou não. Não só sob o ponto de vista ambiental, mas econômico também.
A legislação ambiental permite que qualquer desejo de construção seja analisado por um órgão ambiental. Dependendo de uma série de características, do tamanho, se envolve terras federais, estaduais ou municipais, o licenciamento ficará com uma dessas instâncias. No caso do porto chamado de Meridional, em Arroio do Sal, o trâmite é do Ibama em Brasília, mas passa também pela superintendência do órgão no RS.
Só para contextualizar
Antes de mais nada, moramos num país que tem uma trajetória de construção de uma política ambiental. Há várias instâncias, leis, decretos, resoluções etc. que definem como devem ser as medidas para que um empreendimento seja viabilizado e entre em operação. A Constituição de 1988, assim como os acordos assinados na Rio 92, foi decisiva para que se estabelecesse uma série de cuidados com o ambiente. Antes disso, o governo e as empresas tinham muito pouca preocupação com os estragos que alguma indústria, estrada ou qualquer obra de impacto poderia causar.
Hoje é necessário que empreendimentos como estradas, portos, indústrias tenham licença para funcionar. É o licenciamento ambiental. Ele é exigido quando uma atividade tem potencial poluidor para que os impactos decorrentes da sua instalação e operação sejam minimizados. Se você mora numa rua e um posto de gasolina ou uma fábrica de panelas deseja se instalar, o dono do negócio precisa incorporar no seu funcionamento várias condições estabelecidas pelo órgão ambiental competente.
O licenciamento pode ser municipal, estadual ou federal, dependendo do tipo, do tamanho e da localização do que se quer fazer. Cada Estado ou município tem regras que correspondem à sua realidade. Mas há questões nacionais que precisam ser respeitadas. Se hoje há uma série de mecanismos de proteção ambiental, é porque, com o passar do tempo, com a ocorrência de acidentes, contaminações, entre outras coisas, o cuidado com a saúde das pessoas e dos seres vivos foi sendo aprimorado.
O licenciamento decorre de muito aprendizado. É claro que há lugares onde há mais exigência do que em outros. Geralmente, na história da civilização, aprende-se com grandes desastres. As normas de segurança de prevenção de incêndio, por exemplo, só foram aperfeiçoadas depois de muito fogo ter se alastrado. Já tivemos casos emblemáticos que fizeram com que uma série de normas fosse criada para evitar a gravidade de acidentes.
Grandes incêndios décadas atrás, por exemplo, provocaram mudanças no projeto de construção de edifícios. Hoje, no Brasil, há uma série de normas de segurança para que o fogo não se alastre. É preciso ter porta corta-fogo, mangueiras em cada andar, enfim, diversas medidas de segurança, pois, se for necessário, seja possível evitar que as chamas se alastrem. Precisou acontecer acidentes para que medidas fossem tomadas.
Tudo isso para contextualizar e provocar uma reflexão. Será que é possível fazer o que a imaginação do Homo demens, ops, dito sapiens, quer em ambientes onde a natureza tem mostrado o quanto é poderosa e hostil? Qual será o impacto do trânsito intenso de caminhões com carga pesada naquela região? Pois isso e muito mais precisa ser avaliado por quem vai colocar dinheiro nessa ideia.
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Foto da Capa: Reprodução Redes Sociais