A obra de Gaudi, em Barcelona, é bastante conhecida. É pura fantasia, imaginação de infinitas formas que nos levam a associá-las a florestas tropicais, bichos do mar e sei lá mais que outras figuras da natureza. E não foi só ele que projetou dentro do chamado Modernisme, o Art Nouveau catalão. Dentre tantas obras que se pode visitar, a que mais me deixou marcas foi o Palácio da Música Catalã, onde assisti a um concerto. O projeto não é do Gaudí, é do arquiteto Lluís Domènech i Montaner, mas certamente bebiam na mesma fonte. A sensação que tive lá dentro é de que algum alucinógeno deveria sair das torneiras dessa cidade. Não só pela inventiva dos arquitetos, mas pela aceitação do poder público, dos financiadores, dos construtores. Enfim, todos bebiam da mesma água…
O resultado é magnífico. Ouvir um concerto enlevado pela profusão de formas dessa sala é realmente uma experiência única. Nada de fechar os olhos para ouvir melhor. Ao contrário, olhos abertos para a música entrar por todos os poros.
Hoje, vou me permitir soltar a fantasia. Quero imaginar a natureza invadindo a cidade, muito mais verde do que asfalto. Já pensaram? Imaginar que nosso prefeito fosse acometido de um desejo louco de libertar nossos arroios. Do nada ele troca a obstinação por arranha-céus por uma febre arranca-asfalto. Fantasia, gente. Não vai acontecer.
Atualmente mal identificamos o sistema de drenagem natural de Porto Alegre ou, se quiserem, posso apostar, de qualquer cidade brasileira. Vemos córregos raros, aqui e ali. A grande maioria virou tubulação enterrada, sumiram! Carros e pedestres circulam por cima deles e só prestamos atenção neles quando transbordam ou exalam mau cheiro. E os culpamos pelos alagamentos, como se não fossemos nós que chegamos depois com nossa mania de pavimentar tudo. Mas eles estão ali, canalizados, sem oxigênio, sem peixes, sem vida.
Liberdade aos arroios! Essa é a minha nova campanha!
Mas de que arroios estou falando?
O mais famoso, pelas suas dimensões, é o da avenida Ipiranga. Desviado e retificado, foi transformado num canal bonito em sua parte mais antiga, quando foi ornamentado com belas pontes ladeadas por escadarias que convidavam à chegada da beira d’água. Aos poucos, foi se perdendo o amor à estética e cada nova ponte virou um caso de engenharia estrutural.
As antigas, perderam o charme pelo abandono e por restaurações que ofendem o nome dessa atividade. Mas o Arroio Dilúvio está ali, presente, com a dignidade um pouco roubada, mas guarda um orgulho de servir à cidade: “– O que seria de vocês se eu não viesse lá da Lomba do Sabão recolhendo todas essas águas recolhidas nos seus bueiros? Recolho também, infelizmente, lixo de todo tipo.”
Alguns indignados não se conformam: “– Não tens vergonha de andar assim desnudo?” E pensaram em cobri-lo para aumentar o número de pistas para o tráfego. Felizmente esse hábito brasileiro não chegou ao ponto de cobrir o Dilúvio e ele virou a exceção porto-alegrense. São Paulo e Salvador o fizeram sem cerimônia. Também lá é difícil achar um arroio vivo. Belo Horizonte não fica atrás e das muitas outras capitais não sei dizer, mas acho que a história é sempre igual: esconder as águas!
Já os demais arroios de Porto Alegre são invisíveis mesmo ou não passam de valões mais ou menos estruturados, mas nunca paisagisticamente tratados, usáveis. Com águas limpas, então, nem pensar. É preciso buscar o excelente Atlas Ambiental de Porto Alegre para descobrir que eles existem em profusão. Estão cobertos, escondidos, como se a cidade se envergonhasse deles. Em certo sentido, com razão, pois muitos recebem os esgotos de nossas casas. Esgoto é um resíduo que a maioria considera muito simples de eliminar, basta dar a descarga e está resolvido! Para onde vai? Para baixo do tapete, ops, do asfalto.
E então, vamos imaginar os arroios saindo de suas jaulas? Vamos quebrar o asfalto e fazer as pazes com nosso maravilhoso sistema de drenagem natural recuperando suas margens com faixas verdes onde poderemos fazer caminhadas agradáveis, sentar-se e conversar? Vamos imaginar um outro tipo de cidade que não seja a dos automóveis, das grades e blindados?
Sei, vão dizer que eu enlouqueci. Mas a história está cheia de inflexões que se deram a partir de ideias consideradas loucas, hereges ou subversivas. E essa, vou dizer, nem é louca, é necessária e já está acontecendo em muitos lugares do mundo. Algumas cidades, como Buenos Aires e São Paulo, contentam-se em marcar no pavimento onde se escondem nascentes e córregos. Movimentos artísticos de conscientização, mas insuficientes para meus desejos revolucionários.
Em Porto Alegre, preferimos gastar milhões fazendo recapeamento asfáltico em cima de ruas de pedra. Os pneus do meu automóvel agradecem, eu não.