Está em nosso imaginário. O cowboy solitário dos filmes americanos. O gaúcho dos pampas. Os vaqueiros da caatinga e do pantanal. Vacas sagradas nas ruas da Índia. Vaquinhas pastando solenes nas montanhas alpinas. Desde que os humanos os domesticaram, há cerca de 9 mil anos, vacas e bois têm convivido conosco, fornecido leite e queijo, carne, couro. Como se diz por aí, do boi só não se aproveita o berro.
Durante a maior parte deste tempo, em que os animais domésticos eram quase membros da família em pequenas propriedades, foi uma convivência harmônica (embora o boi, castrado na infância e morto no início da idade adulta possa ter uma opinião diferente), e pouco danosa ao meio-ambiente. Além do gado, ovelhas e cabras também nos acompanharam em nossa trajetória.
Mas, na medida em que a população e a qualidade de vida foram aumentando, assim como nosso gosto por laticínios e carne, as pequenas fazendas se transformaram em grandes agronegócios industriais, em que os animais representam uma engrenagem de um gigantesco sistema alimentar baseado principalmente no consumo de proteína animal. (Veja aqui o ranking dos países que mais comem carne)
Hoje em dia, o rebanho de bovinos no mundo é de cerca de 1 bilhão de cabeças de gado, criadas para nos fornecer carne e laticínios. Existe uma série de impactos ambientais e econômicos dessa atividade toda. Mas hoje, como o foco são os gases de efeito estufa (GEEs), vou começar falando sobre a relação da digestão desses animais e a emissão de GEEs.
O estômago dos ruminantes, diferentemente do nosso, tem quatro câmaras, que permitem um longo processo digestivo, capaz de quebrar as resistentes fibras de celulose que compõem a grama, seu principal alimento. Nesse contexto, o principal processo é a fermentação entérica, em que bactérias que vivem no estômago propiciam a decomposição do material orgânico, gerando como subproduto o metano. Um gás que, como vimos na coluna da semana passada, é um dos principais GEEs, sendo 28 vezes mais potente que o CO2.
A maior parte do metano assim gerado é expelido na forma de arrotos (nome técnico: eructações). O resto sai do outro lado na forma de flatos (nome popular: você sabe). O gado emite por esse processo uma quantidade de metano equivalente a 2 bilhões de toneladas de CO2, o que corresponde a 40% dos GEEs emitidos pela atividade agropecuária. Apesar de ser uma novidade para muita gente, toda essa emissão de metano tem preocupado os cientistas pelo menos desde a década de 90.
Como vimos na coluna de 6/11, a agropecuária (incluindo a agricultura e outras formas de uso da terra) é responsável por 18% das emissões globais de GEEs. Do ponto de vista das emissões totais de GEEs a emissão de metano pelo processo digestivo do gado corresponde a 4%. É muita coisa. Diante desses números, perde-se a visão idílica de que bois e vaquinhas são inofensivos.
Ou melhor, sendo justos, os animais não têm culpa de nada. Nós é que os criamos em condições na maioria das vezes degradantes (desconfie das propagandas sobre o bem-estar animal) para satisfazer à adoção cada vez mais abrangente, em todo o mundo, da dieta ocidental baseada no consumo de carnes, ovos e laticínios, na maioria das vezes consumidos na forma de alimentos processados.
O que vale para os bovinos vale também para os outros ruminantes, como ovelhas e cabras, ainda que os números totais destes sejam bem menores.
E há mais. Um outro gás, que é associado à criação não só de ruminantes, mas também de suínos e aves, o óxido nitroso – N2O, é 256 vezes mais potente como GEE do que o CO2. O problema aqui não são os arrotos, mas o cocô (nome técnico: estrume, ou fezes).
Quando as fezes dos animais se decompõem, liberam um poderoso coquetel de GEEs, dos quais o principal é justamente o óxido nitroso. Este gás, como veremos em colunas futuras, é também produzido pelo uso de fertilizantes sintéticos e outros processos industriais, de modo que sua contribuição para o efeito estufa é de cerca de 7% do total. Assim como a dos demais GEEs, a concentração de N2O na atmosfera vem aumentando todos os anos.
A agropecuária não envolve apenas a criação dos animais em si, mas também faz com que boa parte dos alimentos produzidos no mundo seja usada não na alimentação humana, e sim como ração para animais. A soja, por exemplo, grande orgulho do agronegócio brasileiro, é mais utilizada para alimentar galinhas e porcos do que seres humanos! É verdade que negócios são negócios, mas isso nos faz pensar se não haveria uso melhor para todas aquelas terras férteis, não?
O fato é que o imenso sistema alimentar industrial que hoje está implantado para atender um estilo de vida pouco saudável está não apenas lançando enormes quantidades de GEEs na atmosfera, mas também destruindo as terras férteis dos continentes e contribuindo para a maior crise da diversidade que esse planeta experimentou em dezenas de milhões de anos. E não há perspectiva de que nosso padrão de consumo vá mudar.
Falarei mais sobre esses assuntos em futuras colunas. Por ora continuaremos vendo os processos que geram GEEs. Nas próximas duas semanas vou abordar a questão dos transportes, que é o processo que costumamos vincular mais diretamente às emissões desses gases. Eu desconfio que você vai ter uma sensação diferente ao entrar no seu carro, e mais ainda ao receber aquela encomenda (baratinha!) que um navio trouxe da China.
Uma nota final: toda a semana, às quintas-feiras, vou postar um vídeo adicional na minha conta do Instagram: @marcomoraesciencia aprofundando um ou mais tópicos da coluna da semana. Confere lá!