A história é bastante conhecida como um dos grandes exemplos de um rasgo de criatividade nascido do mais insuportável dos tédios. Em junho de 1816, um grupo de amigos estava na casa do poeta inglês Lord Byron às margens do Lago Genebra, na Suíça. Chovia, o que inviabilizava passeios pela região, e o grupo se distraía lendo histórias alemãs de fantasmas. Byron, então, lançou um desafio a seus convivas (seu secretário particular John Polidori, seu amigo e também poeta Percy Shelley, a então amante deste, Mary Godwin, e Claire Clermont, irmã de Mary e amante de Byron): criar até o dia seguinte uma história de horror a ser apresentada aos demais. Inspirada pelo desafio, Mary Godwin, que depois passaria a se chamar Mary Shelley ao se casar oficialmente com Percy, criou o embrião de uma narrativa que, um ano e meio mais tarde, em janeiro de 1818, seria publicada sob o nome de Frankenstein, marco da literatura de horror e uma das obras inaugurais da ficção científica.
Sem dar por isso Mary Shelley, cujo nascimento foi celebrado esta semana, em 30 de agosto, concebeu naquele verão suíço, antes mesmo de completar 20 anos, algo que poucos escritores conseguiram, antes ou depois: um personagem que se comunicaria de tal modo com as inquietações mais obscuras da psique humana que acabaria por ganhar vida própria. Ironicamente, a criatura engoliu o criador tanto na vida real – na qual mesmo quem nunca leu o livro ou não conhece sua autora sabe a que o nome se refere – quanto na ficção – dado que a imaginação do público hoje associa o nome Frankenstein ao monstro, quando na história este era o sobrenome do cientista que o criou.
A criatura propriamente dita não tem nome, embora diga, em certa passagem, que talvez devesse se chamar Adão, o nome do primeiro homem na mitologia judaico-cristã. Essa interconexão entre o mitológico e o contemporâneo se repete quando a autora, na publicação do livro, dá à obra o subtítulo de O Prometeu Moderno, equiparando a arrogância científica do doutor Frankenstein à imprudência do titã que roubou o fogo dos deuses e o entregou aos mortais. As alusões mitológicas e deliberadas tecidas pela autora demonstram uma intenção que, para estudiosos como a escritora Susan Tyler Hitchcock, foi cumprida de modo pleno: criar “o primeiro mito da Era Moderna”.
Ícone pop
Ao longo dos últimos 200 anos, a ficção científica foi estabelecendo uma tradição de três eixos: a antecipação das maravilhas da ciência; os problemas sociais e morais despertados por avanços da tecnologia; o horror diante da arrogância científica – este último tributário da mentalidade mítica atenta aos perigos de conhecimento proibido. Frankenstein é um pouco dos três.
Obcecado pela ideia de criar vida por meio da ciência, então vivendo um florescimento sem precedentes, Victor Frankenstein, o médico, gera uma criatura grotesca que, dotada de força e crueldade descomunais, foge de seu controle. Desde então, gerações se renderam ao fascínio sombrio da criatura e dos dilemas de sua mente torturada.
Hoje o livro é menos conhecido do que seu protagonista, uma vez que o cinema se apropriou tão apaixonada e completamente do personagem. Em uma série de filmes feitos a partir de 1931, Boris Karloff encarnou uma versão da criatura que se tornou uma imagem indelével da cultura pop, presente mesmo após centenas de outras versões, como a de Robert De Niro no Frankenstein de Mary Shelley, dirigido por Kenneth Branagh em 1994, ou a de Peter Boyle na comédia de Mel Brooks O Jovem Frankenstein (1974). Apenas nas últimas duas décadas, Frankenstein também apareceu com os rostos de Shuler Hensley no sofrível Van Helsing (2004) e de Aaron Eckhart no ainda pior Frankenstein: Entre Anjos e Demônios (20014), entre vários outros exemplos – com uma ressalva para a interpretação digna do inglês Rory Kinnear na série Penny Dreadful.
Frankenstein é até hoje saudado como um marco da ficção científica, e isso não é por acaso. Parte das inquietações que Mary Shelley colocou em seu livro eram as que estavam no ar em um período de notável revolução científica, com impactos duradouros na própria estrutura social cujos ecos podem ser sentidos até hoje. Como comenta a autora Kathryn Harkup em seu livro Making the Monster: The Science Behind Mary Shelley’s Frankenstein, lançado em 2018, época do bicentenário do romance:
“Como uma adolescente criou uma obra de ficção capaz de encantar, inspirar e aterrorizar durante dois séculos? Como o infame monstro de sua criação, costurado a partir de uma variedade de fragmentos, o romance de Mary pegou uma coleção de retalhos de sua própria vida e teceu tudo para criar uma obra muito maior do que a soma de suas partes. Lugares por onde viajou, pessoas que conheceu e numerosas influências de livros que leu encontraram seu lugar na obra concluída. (…) Os personagens de Mary eram invenções – ainda que muito baseadas em pessoas reais – mas a ciência que seus personagens estudavam era bastante real. Mesmo que os alquimistas que fascinaram o ficcional Victor Frankenstein eram pessoas reais”.
Horror e alegorias
Ainda assim, apesar dessa origem bastante conectada a uma certa compreensão da ciência recorrente em sua época, o livro parece destinado a ser lido mesmo como uma obra de horror, talvez porque a ciência propriamente dita que animava sua trama já ficou definitivamente para trás – um monstro construído com partes de cadáver é reanimado por meio da eletricidade carregada para as terminações nervosas do corpo e voilá, carne morta reverte à vida.
As múltiplas leituras que o livro ainda desperta parecem mais confortáveis se ajustadas no campo de uma certa alegorização da trama. Como uma imagem do dilema ético representado pelos avanços do conhecimento, por exemplo, com a ideia de que algo talvez não deva ser feito apenas porque é possível – uma discussão que ressoa nas contemporâneas discussões a respeito da criação de inteligências artificiais avançadas – um debate que ainda se dá em termos muito semelhantes a elementos apresentados por Mary Shelley em seu livro, uma vez que o desenvolvimento de uma IA completamente autônoma é, hoje, um dos mais próximos exemplos de “criação de vida” discutidos no interior da ciência.
Outro elemento que torna sua obra instigante para pensar o agora, mesmo 200 anos depois, é a própria concepção de ciência como uma paixão que está na raiz de seu romance. Frankenstein criou um tropo recorrente e muito imitado pela ficção científica que se seguiu a ele, a ideia do “cientista louco” que, obcecado pela busca do conhecimento, atropela limites e cautelas para criar algo que não tarda a escapar de seu controle.
Em plena vigência do otimismo do Século das Luzes, no qual o pensamento recorrente era o da racionalidade e da ciência como as ferramentas da libertação inevitável do homem de seus preconceitos e das garras da ignorância, Frankenstein também se avulta como um conto moral que adverte, em tom de horror, que a ciência pode ser também uma forma de ignorância, principalmente quando submetida a paixões, obsessões e interesses escusos.
Nada mais relevante em uma época de instrumentalização política da pseudociência em nome da negação e da ignorância…