Nas plantações de algodão no sul dos EUA antes da Guerra Civil, a mão-de-obra era composta de escravos negros, os quais não raras vezes se revoltavam e tentavam fugir.
Um médico chamado Samuel Cartwright argumentava que aqueles escravos sofriam de duas formas de doenças: a drapetomania, cujo sintoma era uma incontrolável propensão de fugir, e a dysathesia aethiopica a qual se manifestava na obsessão de destruir as plantações e na recusa em trabalhar. Hoje esses comportamentos seriam chamados de “sociofobia”.
Segundo a Associação de Distúrbios de Ansiedade da América (ADDA), o elemento-chave da sociofobia é a extrema ansiedade em relação à opinião dos outros ou a comportamentos que possam ser embaraçosos, ridículos e violentos.
O distúrbio entrou oficialmente no léxico psiquiátrico em 1980, quando foi incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), o qual codifica tudo, da esquizofrenia à cleptomania. O DSM é um documento de notória maleabilidade, escassamente sensível às realidades e tendências sociais, ideológicas e econômicas.
Por exemplo. Durante muitos anos houve uma cruenta batalha dentro da Associação Psiquiátrica Americana (APA) a respeito da exclusão da homossexualidade da lista de doenças ligadas ao comportamento sexual, a qual só foi excluída na edição de 1974, dando lugar ao tabagismo, isto antes da pandemia da AIDS.
Para pacientes e médicos, o ponto principal da DSM é que, sem um verbete e um número em código, algumas condições físicas e mentais não têm cobertura das prósperas empresas de seguro-saúde. (A sociofobia tem o número 300.23).
Assim, a APA é incentivada a codificar tantas alterações de comportamento quantas sejam plausíveis.
No início, eram poucos os casos da nova doença: 2% da população norte-americana. Mas já em 1994, um estudo dos Arquivos de Psiquiatria Geral avaliava em 13% a incidência dela, isto é, 1 entre 8 pacatos cidadãos dos EUA estava tomado pela “terrível moléstia”, quase uma peste epidêmica. E quando esta incidência foi revelada, as empresas produtoras de medicamentos passaram a demonstrar um agudo interesse pela sina dos desventurados sociofóbicos, o qual se manifestou sob a forma de financiamentos diretos para pesquisas. Algumas dessas beneméritas instituições canalizaram verbas vultosas por intermédio de entidades sem fins lucrativos, como a APA e a ADAA, cujo “site” sobre sociofobia na WEB é sustentado por uma poderosa indústria farmacêutica.
A campanha “Alérgico à Gente” é apenas um dos projetos da ADAA patrocinado por multinacionais de medicamentos que, cada vez mais, se mostram preocupadas com os pobres norte-americanos sociofóbicos que, ano a ano, aumentam em número, internações hospitalares e ingestão de medicamentos.
E 150 mil habitantes do país morrem anualmente por “overdose” com o consumo de drogas, incluindo mortes causadas por opióides ilegais e prescritos, sendo 70.000 delas causadas por opióides sintéticos, principalmente o fentanil, que entra no país pelas vias terrestres, aéreas e marítimas.
E a Drug Enforcement Administration (DEA), agência federal de aplicação da lei e responsável por combater o tráfico e a distribuição ilícita de drogas subordinada ao Departamento de Justiça dos EUA, coordena e conduz investigações sobre drogas, tanto em nível nacional quanto internacional. E, como sabemos, o faz com muito pouco sucesso.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia de letras do Rio Grande do Sul.
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Foto da Capa: Escravos em uma fazenda de café. Vale do Paraíba, 1882.