Quando eu era adolescente, ali pelos meus 14, 15 anos, me lembro de, certa tarde, estar na casa de um amigo em São Gabriel. Havia sido convidado para o almoço, então imagino que fosse um dia de fim de semana. Como é comum no Interior, rolava uma conversa descontraída na sala, com meu amigo e o pai dele aboletados no sofá, mas a TV seguia ligada – imagino que isso tenha se tornado um hábito local para que os momentos de silêncio constrangedor numa conversa tivessem ao menos uma espécie de pretexto (não há ali pessoas que não sabem o que dizer uma à outra, e sim pessoas que por um momento pararam de falar porque acharam o que passava na televisão interessante).
A TV estava sintonizada na Globo. Não me lembro direito o que estava passando – como disse, me parece que era fim de semana, talvez domingo, então talvez não fosse o Jornal do Almoço. Mas era claramente algum programa da RBS TV, porque a certa altura aparecia um repórter magrelo de óculos que mais tarde eu viria a saber chamar-se Cunha Jr. caminhando ao lado de um entrevistado num parque que mais tarde eu viria a descobrir como a Redenção. O entrevistado era um músico também de óculos, cabelo despenteado muito escuro. Em determinado ponto da conversa, o Cunha Jr. perguntava ao músico algo que era mais ou menos assim: “Considerando a repercussão recente do teu disco e do teu trabalho, esse é o ano de Nei Lisboa?“.
Essa pergunta específica foi feita em um momento em que a conversa havia esfriado na sala da casa do meu colega (na época, eu só tinha um número muito curto de variações com as quais responder a perguntas sobre colégio e família, as únicas que o anfitrião me fazia). Ao ouvir o que o repórter dizia na TV, o pai do meu amigo, satisfeito por poder reiniciar o papo com uma tirada engraçada, virou pra nós e mandou um “mas quem caralhos é Nei Lisboa? Vocês aí que são os guris das novidades sabem quem é esse sujeito?”
Não sabíamos.
A cidade e as serras
Não sabíamos porque meu colega e também seu pai eram ouvintes assíduos da música regionalista gaúcha também chamada naquele tempo e lugar de “música de gauchinho”. E porque eu já nessa época me interessava mais por som pesado, então eu conhecia coisas como a banda Astaroth mas de Nei Lisboa nunca tinha ouvido falar. Quando me mudei finalmente para Porto Alegre, em 1992, conheci a música de Nei Lisboa e a incorporei ao meu repertório de predileções, mas esse episódio voltaria outras vezes à minha mente a cada vez que eu era confrontado com indícios de uma visão meio óbvia: existe um divórcio estético que é também representativo de um divórcio político entre a Capital e o Interior.
Nei Lisboa ele próprio protagonizou uma polêmica de razoável tamanho há muitos anos quando comentou que, em sua opinião, o corpus musical artístico do gauchismo era pouco sofisticado, gerando a ira dos tradicionalistas (não que precise muita coisa para provocar a ira dos tradicionalistas, pensando bem). Um dos fenômenos culturais mais antigos do Estado, a Feira do Livro de Porto Alegre, só costuma entrar no radar mais amplo do gauchismo quando elege como patrono algum nome que mantenha com o movimento laços consistentes, como foram o caso de Barbosa Lessa, Luiz Coronel e Paixão Côrtes. O que sempre me deixa um pouco bolado com isso é que a Feira, ao eleger tal nome, reconhece sua importância nas letras locais, mas o tradicionalismo de modo geral se mantém afastado de quaisquer outros que não sejam os seus cultores.
Lanço estes exemplos apenas para falar de percepções que tive de um fenômeno do qual muitos já falaram antes – fazendo, inclusive, ligações dessa constatação com uma certa tendência histórica de oposição entre Capital e Interior que remonta ao próprio fato de Porto Alegre, hoje meio que dominada por um contragolpe mortal do CTGismo, na verdade ter rechaçado com todas as forças a Revolução Farroupilha e permanecido leal ao Império. Também não é uma questão especialmente nova ou exclusiva nossa essa clivagem entre “a cidade as serras”, para pegar emprestada uma dualidade imaginada por Eça de Queiroz e que bem define uma certa diferença de fundo entre o pensamento interiorano e o metropolitano. Porto Alegre e o interior pensam diferente sobre o mundo, de modo geral.
A cidade e a cidade
O que eu iria descobrir mudando para Porto Alegre alguns anos depois daquela tarde narrada no início deste texto, contudo, é que não há apenas mais de um mundo aparente entre Porto Alegre e as diferentes regiões do Interior. A própria Capital periodicamente testemunha um embate entre duas visões internas – “a cidade e a cidade”, para pegar o título de outro escritor, China Miévile. Um deles pode ser visto às claras nos dias de hoje. São duas as Porto Alegre em disputa, duas visões para o futuro da cidade. E como este texto é meu, me sinto confortável em confessar pra vocês que eu não gosto nadinha da que parece estar ganhando…
A atual Porto Alegre carrega as marcas (para não dizer cicatrizes) de quase duas décadas de administrações alinhadas com as aspirações do Capital (e que, ao contrário de seus apologetas, não necessariamente são as mesmas DA Capital em que vivemos). Tem gente melhor do que eu na Sler escrevendo regularmente sobre isso, como o grande professor Flávio Kiefer, recomendam que o leiam. Mas fico algo perplexo em acompanhar algumas grandes decisões que estamos vendo tomadas pelo Executivo municipal (que, não quero aguar o chope de ninguém, corre grande risco de reeleição no próximo pleito).
Eu tento não ficar restrito à minha bolha quando posso, então é com alguma perplexidade que eu topo constante no termômetro descalibrado das redes sociais com uma legião de admiradores do que se fez com a “nova Orla”, uma obra que desde o início foi marcada por polêmicas, contratos algo dúbios, informações desencontradas, mudanças de planejamento sem consulta popular, etc. O resultado é uma faixa de passeio com quiosques, sem árvore alguma e com a única sombra produzida pelos guarda-sóis de quem vende cerveja e uns bolinhos mirrados que, a julgar pelo preço, devem ter sido feitos com bacalhau importado diretamente da Noruega. A própria joia da coroa do empreendimento, o tal Cais Embarcadero, é uma coisa de uma breguice constrangedora em que gente remediada vai ver gente endinheirada andar de jet-ski – todo um discurso publicitário associado ao espaço busca construir uma ideia de sofisticação quando o que se tem é de uma jequice em tudo semelhante a ir pro aeroporto se entreter com pouso de avião (uma comparação que seria rejeitada na hora pelos defensores do tal espaço se eles viessem a ler este texto, o que acho improvável).
Imitações
Não à toa, vem dos “empreendedores” da Orla outra ideia de um provincianismo constrangedor, copiar o hábito carioca de aplaudir o pôr-do-sol, algo de que o próprio Rio meio que se envergonha já desde os anos 1990.
Temos ainda outro projeto que vem sendo discutido muito a sério, louvado inclusive nas páginas dos jornais (é o um dos problemas da imprensa gaúcha o fato de alguns de seus principais veículos de mídia pertencerem a redes corporativas com tentáculos espraiados também por outras áreas que têm seus próprios interesses quando se fala do futuro da cidade, como a construção civil), o de instalar no Morro da Polícia um letreiro com o nome da cidade. Aos moldes de Hollywood. A própria maior empresa de comunicação do Estado usou essa expressão numa “cartola” para a notícia em seu site: “maior que Hollywood”.
São projetos que demonstram muito bem o tipo de pensamento que informa a visão de mundo dessa metade de Porto Alegre, para quem qualquer coisa construída é melhor do que nada, mesmo que seja feia, qualquer árvore no chão é um preço pequeno a se pagar por mais um mercadão em forma de caixa e um espaço intocado pelo mercado está, na verdade, “abandonado”. Não sei direito se os envolvidos nisso tem conhecimento, imagino que tenham, mas o famoso letreiro de Hollywood começou como uma propaganda para vender lotes de terra em Los Angeles – na época, o que se podia ver acima do monte Lee, onde as letras estão até hoje, era Hollywodland, nome do empreendimento. Como o anúncio megalomaníaco dominava a paisagem e se tornou um marco geográfico reconhecível de fato, foi adotado como parte do panorama visual e cultural da comunidade. Logo, há aí um processo: algo inventado para vender passou a designar uma forma de identificação social e foi incorporado como uma . Querer repetir a mesma coisa em Porto Alegre fazendo o percurso avesso é canhestro. A menos que o letreiro seja apenas uma forma sutil de escancarar o que todo mundo meio que já acha na atual gestão da cidade: que ela está à venda.
Especulação e crime
Ao mesmo tempo, o próprio fato de Hollywood em particular e Los Angeles em geral ter em seu passado pés fincados até os joelhos em corrupção e especulação imobiliária, também veio a se tornar um signo cultural bastante representativo da cidade. Não à toa, corrupção de agentes públicos, violência policial e especulação predatória são temas recorrentes de outro dos marcos culturais vinculados a Los Angeles, a vertente rica vertente da narrativa policial da qual um Raymond Chandler, por exemplo, é um expoente. E não por acaso, a derrubada das letras “Land” que acompanhavam Hollywood e o projeto de venda de terrenos a elas associado ocupa um espaço importante no clímax narrativo do romance Dália Negra, outro clássico do gênero, produzido por James Ellroy.
Quem levanta o dedo para falar alguma coisa é jogado pela mídia e pelos “empreendedores” locais numa outra espécie de caricatura que vem sendo há anos usada como salvo-conduto para delírios políticos inconsequentes que beneficiam o mercado imobiliário e quase ninguém mais. São os “abraçadores de árvores” ou os “caranguejos” que travam “qualquer projeto de cidade” – quando o projeto dessas pessoas, entre as quais me incluo, é outro. Menos caixas favorecendo a especulação, mais árvores e vias de acesso a pedestres, mais alternativas de transporte que não o sacrossanto carro particular, mais transporte público, mais espaços públicos em vez de quiosques e quadras de aluguel.
E, claro, uma Porto Alegre cujos “projetos de futuro” tentem fazer dela mais Porto Alegre e menos uma pobre imitação barata do Rio ou de Hollywood.
Foto da Capa: Capsula Consultoria | Divulgação
Mais textos de Carlos André Moreira: Clique Aqui.