“Tente passar pelo que estou passando”, gritava Gal Costa, no começo dos anos 70, pedindo atenção para as suas dores de amores e também escancarando parte do que seria o hino daquele período edênico e indizível que se escondia atrás das dunas do barato – as dunas da Gal.
O local onde Gal – morta no último dia 9 de novembro, aos 77 anos – pontificava era a mesma Ipanema – ou “Y-Panema, a água imprestável para peixes”, segundo os índios que achavam que lá naquela área nada dava e que acabou se tornando fértil pelas ideias, pelos movimentos, pelas pessoas e pelas pequenas e grandes revoluções. Um exagero de criatividade para uma região de pouco mais de um quilômetro quadrado e que exportou para o Brasil e para o mundo a bossa nova e o Pasquim, a esquerda festiva e os dzi croquettes, os intelectuais respeitados e os porra-loucas. Um lugar onde as areias e as ondas abrigavam as memórias engajadas e libertárias do pintor Carlos Vergara e também o papo zen-surfístico de um Evandro Mesquita cabeludo e de calcinhas Zazá. Ou ainda onde desfilavam as profecias kaóticas de Jorge Mautner, a morbeza (morbidez + beleza) de Jards Macalé, a poesia marginal de Chacal e Heloísa Buarque de Holanda, os desbundes dos irmãos Waly e Jorge Salomão, a cosmococa de Neville D’Almeida.
Tudo isso que pouco tempo antes havia sido um cantinho, um violão, um amor, uma canção – e onde da praia via-se o Arpoador e o Morro Dois Irmãos. Que lindo! – agora é revivido pelos olhos do documentarista Olívio Petit, 66 anos de praia e de bons serviços prestados à memória audiovisual.
O que Petit desvenda (não com uma Rolleiflex, mas com a instantaneidade de uma Polaroid ou a agilidade de um Super-8) é a visão mais próxima do paraíso carioca nos últimos 50 anos. Um pedaço de terra que tinha apenas o Oceano Atlântico como limite e que, como uma ilha errante, podia ora se aproximar mais de Copacabana, ora do Leblon. Eram as Dunas: uma imensa área onde Gal Costa reinava e seus súditos cabeludos faziam do local um território livre – para tudo. O relato desta viagem está em As Dunas do Barato, longa-metragem de estreia de Petit, em cartaz no Netflix, fazendo uma crônica-relato de uma praia, de uma época, de dezenas de personagens e de um estilo de vida.
Mas o filme de Petit transcende as dunas. Mostra como o Rio e o Brasil viviam um período de grande efervescência criativa e cultural. Quando o emissário submarino começou a ser montado, foram os surfistas dos pranchões, que queriam que o Havaí (ou a Califórnia) fosse aqui, os primeiros a notarem o valor (afetivo) da região. Acreditaram que pudessem ter um espaço exclusivo, mas logo tiveram que dividir o pedaço com o frenético Lennie Dale (que se garantia na porrada), com o experimentalismo teatral de Rubens Corrêa, Ivan de Albuquerque e José Wilker e também com a beleza de musas de outras áreas, como Scarlet Moon de Chevalier – garota da Zona Sul (ou da Zona Sol, como a definiu o escritor Silviano Santiago) – que lá chegava como a atriz nos filmes vampirescos de Torquato Neto, o único vampiro do mundo que circulava à luz do dia trajando sandálias de couro. “A produção cultural de um país se faz num caldeirão”, aponta o artista plástico Carlos Vergara, um dos melhores e mais lúcidos entrevistados do filme, secundado por outros sobreviventes como Bruce Henri, Dadi, André Di Biase.
As Dunas do Barato é um filme saudosista sem ser nostálgico. Não existe aquele papo de “…naquele tempo é que era bom…”, até porque eles eram felizes – e sabiam. Ou, quem não sabia, deveria seguir o conselho que Neville D’Almeida recomenda quase no final do filme: “É preciso que a gente se organize para fazer tudo isso uma outra vez”.