A origem do azulejo é árabe. A cerâmica vitrificada surgiu na Mesopotâmia, desenvolveu-se, especialmente, no mundo árabe, e, após a invasão muçulmana, liderada pelo general berbere Tariq, que venceu os visigodos, liderados pelo Rei Rodrigo, na Batalha de Guadalete (711), chegou à Península Ibérica (Espanha e Portugal).
O maior estudioso do assunto, em Portugal, o engenheiro João Miguel dos Santos Simões (1907-1972), afirmou que os etimologistas discordam da origem da palavra azulejo, sendo díspares as teorias e variadas as explicações, mas estão de acordo, no entanto quanto a origem persa do étimo de procedência mesopotâmica azul, e que por evolução semântica, atrofiou-se zul e deu a forma verbal zulej (zelij, no Norte da África, por alteração do valor das vogais, fenômeno bem conhecido dos etimologistas), que define o que é polido, escorregadio e brilhante. (SIMÕES, 1990, P. 41). Segundo este autor, a substantivação da forma verbal de zelij deu, com o artigo, a palavra azzelij ou, mais foneticamente, az’lij (Idem, p. 42). Santos Simões definiu azulejo como “a peça cerâmica, de forma retangular (ou mais precisamente, quadrada), para aplicação parietal, tendo a face nobre vidrada” (ibidem, p. 41). O seu emprego alargou-se de Portugal às ilhas atlânticas e aos territórios ultramarinos, nomeadamente ao Brasil.
A introdução da azulejaria no Brasil ocorreu no século XVII. Naquela época, recém os bandeirantes iniciavam a penetração para o interior do vasto território que viria a ser incorporado à colônia portuguesa, a partir do Tratado de Madri (1750). Até então, os portugueses pouco se arriscavam. O franciscano Frei Vicente do Salvador (c. 1564-c.1636), o primeiro historiador, escreveu na obra História do Brazil (1627), no livro primeiro, capítulo terceiro: “contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejo” (SALVADOR, 2010, p.70), motivo pelo qual foi na região litorânea que o material foi difundido. São belíssimos os painéis de azulejos historiados presentes, em especial, nos interiores das igrejas conventuais franciscanas e nos claustros dos conventos dessa ordem religiosa. Todos trazidos de Portugal para ornamentar estes estabelecimentos. Neste caso, os azulejos historiados, para esclarecer o leitor, eram os painéis que retratavam cenas da vida de Cristo e de santos, surgidos naquela centúria.
Durante o século XIX, o azulejo ganhou as ruas, também no litoral, de Belém do Pará à cidade do Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Passou a ser utilizado para revestir fachadas na arquitetura civil, em virtude da umidade e da salinidade dos ambientes. Assim, os sobrados com atividades comerciais no térreo e residenciais nos demais pavimentos, na maioria dos casos, para não dizer na sua quase totalidade, adquiriram feição inédita. “Além de estar em dia com o revestimento da moda, diga-se de passagem, tão importante que comparece em Portugal como refluxo cultural brasileiro” (CURTIS, 2003, p. 325). No século XIX, no Brasil, foram difundidas as linguagens, neoclássica e posteriormente neogótica, assim os exemplares possuem vergas nas aberturas em arco pleno ou em forma ogival, em Belém do Pará, em São Luís do Maranhão, em João Pessoa, na Paraíba, em Salvador, na Bahia, chegando até o extremo sul, em cidades como Rio Grande e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
O saudoso professor Júlio Nicolau Barros de Curtis lembrava que São Luís do Maranhão adquiriu sua fisionomia característica na primeira metade do século XIX, quando a produção algodoeira, criou as condições que possibilitaram “as importações de azulejos portugueses e franceses de extraordinária riqueza cromática e variadíssima padronagem” (Idem, 2003, p. 107), que tornaram inconfundíveis os logradouros daquela cidade, em especial a Rua Portugal.
No Rio Grande do Sul, o exemplar mais destacado é o sobrado de azulejos, à Rua Marechal Floriano, nºs 101 e 103, esquina rua Francisco Marques, no centro da Cidade de Rio Grande, construído em 1862 e restaurado nos anos de 2000 e 2001. A edificação é patrimônio cultural do Estado, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE).
Porto Alegre não é uma cidade litorânea. Encontra-se próxima dele, na Depressão Central do Estado. É um local muito úmido. E foi exatamente este o motivo pelo qual alguns sobrados receberam revestimentos de azulejos. Os remanescentes estão na região central da cidade, denominada de “centro histórico”, e não passam de meia dezena.
A lei municipal nº 4317, de 16 de setembro de 1977 (revisada em 1982), listou 47 bens imóveis de “valor histórico e cultural e de expressiva tradição para a cidade de Porto Alegre”. Nela estão inscritos os quatro sobrados e os remanescentes da casa. Para que o leitor possa conhecê-los, segue abaixo um roteiro:
Fachada remanescente de uma das casas de azulejos da Rua Duque de Caxias, nº 876
No local existiram casas gêmeas do tipo conhecido por “três quartos de morada” (em que a fachada apresenta uma janela de um lado separada de outras duas, por uma porta, portanto, com corredor central), de porão alto, provavelmente construídas na primeira metade do século XIX, e que foram revestidas de azulejos estampados, para adequá-las aos modismos vigentes. Nas ombreiras das aberturas, Curtis as descreve como sendo de arenito, possuindo pequenos capitéis na parte superior, com a vergas revestidas de azulejos. A falta de sensibilidade – ou de incapacidade de enxergar-, fez com que recentemente fossem pintadas de amarelo. As esquadrias das janelas, segundo nos informa, “funcionariam originalmente, na forma de guilhotina, com caixilhos de pinázios enxadrezados, foram substituídas pelas de abrir à francesa” (Curtis, 2003, p. 325).
Sobre a fachada da casa remanescente (onde aparece no gradil a data da reforma, em 1863), escreveu o professor Júlio de Curtis: “Aí, a superfície azulejada na forma de um grande tapete policrômico, exibe o orgulho de status e a faceirice endomingada de quem vestia a residência com o que de mais moderno se dispunha nos meados do século passado. A padronagem principal dos azulejos está complementada com barra de modelo marmorizado, este de indiscutível procedência portuguesa” (Idem, 2003, p. 325). Uma delas foi demolida. A outra, foi objeto de um estudo coordenado pelo professor Curtis, designado pelo Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para fazer o levantamento cadastral e analítico da edificação, por solicitação da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, amparada por laudos técnicos, que afirmavam que a casa se encontrava prestes a ruir.
Participaram deste trabalho o arquiteto José Arthur D’Aló Frota e os então acadêmicos Fernando Souto Filho, Roberto Luiz Cé e Rufino Becker. O objetivo da municipalidade era salvar a azulejaria, os gradis de ferro e as peças de cantaria. Entendendo que o município não tinha recursos para desapropriar e restaurar e que o proprietário também não tinha como assumir tal ônus, considerando ainda o fato de que o município tinha permitido, anteriormente, que seu vizinho, proprietário da outra casa a demolisse para lucrar com a construção de edifício de treze andares, a solução encontrada foi a de propor a manutenção apenas da fachada, permitindo-se a construção de imóvel recuado em relação à mesma. A proposta de Curtis foi aprovada por unanimidade no Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (COMPAHC).
Posta em prática a alternativa apresentada por Curtis, sobrou a fachada. Como a casa possuía uma estreita calçada, atualmente os transeuntes passam por trás dela. No local foi construído um edifício em altura, chamado, ironicamente, de “Porto Alegre Antigo”, em cujo térreo funciona um pequeno mercado.
Sobrado de azulejos da Rua Sete de Setembro, nº 708
Datado da segunda metade do século XIX, também tinha o térreo voltado ao comércio com residência nos pisos superiores.
Na fachada, de gosto classicizante, no térreo, ao que tudo indica, houve reforma. Na parte inferior há uma barra horizontal rebocada que tem continuidade nas ombreiras e vergas das três portas. Nos flancos, pilastras revestidas de azulejos em relevo de cor amarelo se destacam. As paredes estão revestidas com azulejos estampados em azul e branco. As portas almofadadas, possuem bandeiras fixas, sendo a central maior que as outras. Uma das portas serve para acessar através de uma escada o pavimento superior, numa situação análoga as existentes na maioria dos sobrados desde o período colonial até o século XX, nos centros históricos mais tradicionais do país.
As outras portas servem ao estabelecimento comercial. No piso superior, residencial, a escada normalmente dava para um corredor entre a sala de estar na parte fronteira e a sala de jantar na parte posterior. Ao longo do corredor, além da escada, ficavam as alcovas e posteriormente, os quartos. Na fachada, três aberturas (janelas rasgadas como tecnicamente são chamadas) dão acesso ao balcão corrido, com gradil metálico, sustentado por quatro mísulas. Em todas as aberturas da fachada aparecem vergas de arco pleno, que na décima nona centúria, substituíram as vergas em arco abatido usadas no século XVIII e nas primeiras décadas do Brasil Imperial. Entre as janelas rasgadas, pilastras revestidas de azulejos amarelos, em relevo, lembrando colunas, as emolduram e parecem sustentar a barra horizontal ornamentada que parece um entablamento, e sobre a qual encontra-se a platibanda vazada, com gradis metálicos entre os pilaretes alinhados com as pilastras do segundo piso. Atualmente funciona no imóvel um clube de danças chamado de Cabaret!
Sobrado de Azulejos à Rua dos Andradas, nº 895, entre as ruas General João Manuel e Caldas Júnior
O prédio data da segunda metade do século XIX e sua fachada recebeu azulejos portugueses. Bastante arruinado, o sobrado foi saqueado à luz do dia, em 12 de janeiro de 2009, uma segunda-feira (CP, 13/01/2009, p. 7; ZH, 13/01/2009, p. 35), e como de praxe, nestas situações, sofreu um incêndio no início da noite de 24 de dezembro de 2010 (CP, 26/12/2010, p. 12). Dele restou apenas a fachada. Esta foi recentemente recuperada sob a responsabilidade técnica do jovem arquiteto Lucas Volpatto (restauração ocorrida entre setembro de 2017 e janeiro de 2018). A restauração deu-se por acordo judicial, depois que a Promotoria de Defesa do Meio Ambiente, moveu uma ação civil pública contra o proprietário. O locador do imóvel Valmir José Lando arcou com os custos da intervenção. Reconstruído, hoje abriga o “Boteco do Centro Histórico”.
Lucas reaproveitou as peças de azulejos originais e combinou-as com outras encomendadas à empresa carioca Cerâmica Luís Salvador. Para realizar o trabalho, Volpatto contou com a consultoria de Zeila Machado, de Salvador, com as restauradoras catarinenses Anice Jaroczinski e Katherine Coelho e com o mestre Manuel Fernandez. Tudo indica que teria portas com arco pleno no térreo. Fotos do casario da cidade no final do século XIX, de ruas como a Sete de Setembro e José Montaury, indicam correspondência entre as aberturas nos sobrados com dois pavimentos. Neste da Rua dos Andradas, o pavimento superior, restaurado, apresenta três aberturas voltadas para um balcão corrido, apoiado em cinco mísulas. As paredes são revestidas de azulejos estampados em azul e branco. Quatro pilastras revestidas de azulejos em relevo, nas cores amarelo e branco, emolduram as aberturas, cujas vergas também em arco pleno, são revestidas do mesmo material. No ponto equivalente às chaves dos arcos plenos um azulejo em relevo, em azul e branco dá um toque especial na decoração do elemento. Como no exemplar da rua Sete de Setembro, acima da cimalha, na platibanda, os pilaretes dão continuidade ao alinhamento das pilastras do segundo pavimento, e também se alternam com os gradis metálicos.
Sobrado de Azulejo à Rua dos Andradas, nº 1527
Das edificações com revestimento de azulejos na cidade, é a mais alta. Possui três pavimentos. Encontra-se em um ambiente hostil, cercado de edifícios que, quando construídos, desconsideraram a preexistência. O térreo está totalmente descaracterizado, há décadas, resultado da intensa atividade comercial desta que é a mais tradicional rua comercial da área central da cidade. Atualmente o térreo é ocupado por uma loja de calçados. Originalmente deveria ter três portas em arco pleno, com suas paredes revestidas de azulejos estampados similares aos existentes nos pavimentos superiores. É a leitura obvia que faz quem o contempla.
Apesar dos danos causados pelas intempéries e por vândalos (pichações), estes pavimentos superiores chamam a atenção. A começar pelo belíssimo gradil metálico do balcão corrido do pavimento intermediário, um dos mais notórios da cidade. Já o gradil do terceiro piso, também metálico, é mais singelo. Tudo indica que as janelas rasgadas dos dois pisos superiores, sofreram alterações. As superfícies azulejadas destes dois pavimentos encontra-se em mau estado de conservação. Como nos demais sobrados anteriormente citados, há os azulejos em azul e branco, lisos e estampados, revestindo as paredes (diferentes nos dois pisos), e aparecem faixas verticais e horizontais em azulejos em relevo, nas cores, azul e branco ou amarelo e branco. Estas faixas contribuem para reforçar as delimitações com as edificações vizinhas (faixas verticais), entre os pavimentos e destes com o coroamento (faixas horizontais com azulejos de cores alternadas). Nos pisos superiores, faixas horizontais também demarcam a altura das partes moveis das janelas rasgadas. Estas aberturas são emolduradas por azulejos em relevo, amarelo e branco, tendo também, no ponto equivalente às chaves dos arcos plenos um azulejo em relevo, em azul e branco, solução análoga ao existente no sobrado de número 895, da mesma rua.
Tudo leva a crer que a platibanda original fosse metálica. A atual, causa estranheza na relação com o tratamento dado aos exemplares anteriormente citados. É uma platibanda sem vazados, de alvenaria, com quatro pequenos pilaretes, delimitando as três faixas, onde outrora, possivelmente teve gradis.
Para justificar a especulação, vejamos o que o querido professor Curtis escreveu: “O elegante coroamento de alguns sobrados dessa cidade – construídos no terceiro quartel do século XIX – se originou da substituição de pesadas platibandas em alvenaria por leves e esbeltos gradis de ferro. Tornou-se essa moda, não obstante um ou outro exemplo fora do Rio Grande, uma das mais genuínas contribuições porto-alegrenses à arquitetura tradicional do país” (Idem, 2003, p. 121). Anteriormente Curtis tinha escrito que “Sua inocorrência em outras áreas do país nos leva à hipótese – comprovada em recente viagem à Montevidéu – de que tal solução estética nos tenha chegado via Argentina e/ou Uruguai, uma vez que exemplares semelhantes encontramos na matriz daqueles países, precisamente na Andaluzia” (Ibidem, 2003, p. 326).
Sobrado de Azulejos da Rua José Montaury, nº 121, entre a Rua Marechal Floriano e a Avenida Borges de Medeiros
Originalmente possuía dois pavimentos. Nele funcionou na segunda metade do século XX a lojas Cauduro, de material esportivo. A atividade comercial continua. Possui três aberturas em cada pavimento. No térreo, com portas (a central maior, como no sobrado da Rua Sete de Setembro), e no piso superior, com janelas rasgadas dando para um balcão corrido com gradil metálico. Como no sobrado da Sete de Setembro, aqui também, quatro mísulas sustentam este balcão. Merecem destaque o tratamento das quatro pilastras revestidas de azulejos em relevo no pavimento superior e na platibanda. Inferior é a qualidade do tratamento das demais superfícies. É lamentável, a colocação de vidros coloridos nas aberturas.
Concluído o roteiro, é possível afirmar que as brasileiríssimas casas ou sobrados de azulejos de Porto Alegre, precisam de maior atenção. Elas têm pouca visibilidade. Como acontece com o patrimônio histórico, no geral, comparecem mais nas páginas policiais que nas de cultura, onde deveriam estar.
Se tivéssemos que sintetizar, poderíamos afirmar que, na meia dezena de remanescentes, predominam os sobrados de dois pisos, construídos no alinhamento do terreno e encostados aos prédios vizinhos. As fachadas são revestidas de azulejos estampados (em azul e branco), com peças especiais em relevo (principalmente nas cores azul e amarela), que serviam para definir planos na composição das mesmas, e revestir as pilastras e molduras das aberturas. Possuíam três aberturas em arco pleno, por pavimento – demonstrando a pequena testada dos lotes. No térreo eram três portas, provavelmente com a central mais ampla que as outras duas. Lamentavelmente, as transformações e descaracterizações, em especial dos pavimentos térreos se devem às mutilações causadas pelas “modernizações” dos estabelecimentos comerciais.
No pavimento superior, as três janelas rasgadas dão para um balcão metálico corrido, sustentado por mísulas. No coroamento, uma cimalha separa os dois pavimentos da platibanda. Como apontou Curtis, na platibanda, gradis metálicos entre pilaretes também revestidos de azulejos, afirmam uma característica local, dando identidade a este tipo de construção que a vincula à capital estadual meridional.
NOTAS:
CURTIS, Júlio Nicolau Barros de. Vivências com a arquitetura tradicional do Brasil: registros de uma experiência técnica e didática. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2003.
Fogo consome prédio histórico. Correio do Povo, 26/12/2010, p. 12.
Porta de prédio é levada pela Rua da Praia. Zero Hora, 13 de janeiro de 2009, p. 35.
Prédio histórico é saqueado. Correio do Povo, 13/01/2009, p.7.
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (edição revista por Capistrano de Abreu, junho de 1918). Brasília: Edições do Senado Federal, Vol. 131, 2010, p. 70.
SIMÕES, J. M. dos Santos. Azulejaria em Portugal nos séculos XV e XVI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1990.