Quando eu era mais jovem, incomodava-me profundamente o determinismo ao qual todos pareciam submeter-se. Havia um roteiro pré-estabelecido: concluir o ensino médio — ainda chamado de Segundo Grau —, escolher uma profissão, casar, ter filhos. Talvez, com alguma sorte ou insistência, cursar uma faculdade, embora, no meu círculo social, isso fosse mais exceção do que regra. Estávamos nos famigerados anos 1990, quando o acesso à Educação Superior ainda era privilégio, e não direito incentivado por políticas públicas.
Dentro desse enredo engessado, eu me via empurrada a escolhas rápidas, como se o tempo fosse um inimigo a ser vencido. Para as mulheres daquela época, especialmente, o ideal ainda era o de “engatar um relacionamento”, e quando isso não acontecia, as cobranças vinham de todos os lados e, com elas, as frustrações por não corresponder às expectativas alheias.
Foi nesse cenário que tomei minha decisão: concluí o curso de Magistério e segui estudando. Aos trancos e barrancos, ingressei numa universidade particular e, da mesma forma, passei sete anos frequentando as salas de aula sem jamais concluir o curso. Parei de estudar para casar e ter meu filho — uma escolha feita por mim. Esperei sete anos até ser chamada em um concurso público e, desde então, exerço a profissão de professora, onde, aos trancos e barrancos, permaneço até hoje.
Durante todos esses anos, deixei adormecido numa gaveta o sonho de ser escritora. Não me sentia pronta — tampouco digna — de ocupar esse lugar. Só me permiti habitá-lo de verdade perto dos quarenta, quando eu já não tinha tanto tempo para me dedicar a esse trabalho e a vida exigia outros compromissos. Na juventude, eu preenchia cadernos com poemas e até cheguei a esboçar os capítulos iniciais de um romance, tudo escrito à mão. Mais tarde, descrente, joguei tudo fora, convencida de que jamais teria uma chance real de publicação. Tudo era mais difícil. O acesso à literatura era restrito e, no meu mundo, oficinas de escrita pareciam um luxo distante — algo que só fui conhecer muitos anos depois, quando já escrevia com a intenção de publicar, ainda que fosse apenas para presentear minha família com meus livros.
Outro dia, vi um meme nas redes sociais que perguntava: “O que você estaria fazendo se tivesse feito outras escolhas?” E a resposta, logo abaixo, dizia: “Estaria pensando sobre o que estaria fazendo se tivesse feito outras escolhas.” A vida é assim. Vamos tropeçando em suposições, tentando entender o que teria sido, o que poderia ser. Mas há coisas que só acontecem do jeito que têm que acontecer — na hora certa, do modo que a vida encontra para nos devolver a nós mesmas, embora as cobranças sociais aconteçam o tempo todo.
Infelizmente, ainda hoje, muitos aspectos da vida feminina giram em torno da maternidade, apontando essa tarefa não como uma escolha pessoal, mas uma obrigação natural, quase inevitável. Como disse antes, eu escolhi casar e ser mãe — e dessas escolhas, nunca duvidei. Mas não ignoro o peso que tantas outras mulheres carregam, sufocadas pela expectativa social de que a maternidade seja o destino final de toda existência feminina.
No romance A mulher de dois esqueletos, Júlia Dantas toca nesse ponto com precisão: “Mas se eu tiver o filho, abro mão da justificativa para não ter feito tudo o que eu já ia fazer mesmo. Se eu não tiver o filho, vou ter que ser excelente naquilo a que me dedicar, porque não vou ter o álibi da maternidade justificando a minha falta de talento, um abandono de carreira, os fracassos todos que estão por vir. Se não for mãe, vou ter que achar outro jeito de validar a minha existência, para que as pessoas digam: ‘Bom, ela não teve filhos, mas é que escreveu a maior obra da literatura universal, ganhou um Nobel, depois criou a vacina para o câncer, impediu uma guerra, salvou as crianças da fome.’”
O romance, que não é o primeiro da autora, foi publicado pela Editora Dublinense em 2024. Nele, a protagonista, às vésperas dos quarenta, encontra-se diante de um dilema: tornar-se mãe ou dedicar-se plenamente à carreira de escritora — duas possibilidades que, para ela, parecem se excluir mutuamente. A narradora vacila entre esses caminhos, e quem lê, especialmente se for mulher, caminha ao seu lado por entre os becos dos seus impasses, sentindo o peso das escolhas que a sociedade ainda insiste em colocar em oposição. Talvez seja esse o maior desafio: construir-se em meio às exigências que não escolhemos, escavando espaço para quem somos de fato. Hoje, com o passar dos anos e a poeira assentada sobre muitos sonhos antigos, percebo que a vida não é um campo de batalhas perdidas, mas um terreno de persistências silenciosas.
Não me tornei escritora aos vinte, nem publiquei um romance aos trinta. Mas escrevo — e escrevo com o corpo inteiro. Carrego comigo as dúvidas de ontem, as escolhas que fiz e as que deixei passar, mas agora com um gesto mais firme, uma escuta mais atenta à minha própria voz.
E se demorei a entender que podia ser mãe e escritora, profissional e sonhadora, disciplinada e errante — é porque me faltava tempo e, sobretudo, permissão. Mesmo não tendo o tempo que gostaria para me dedicar à escrita, hoje eu me autorizo. Porque, no fim, talvez a vida não precise ser decidida entre um caminho ou outro, mas construída sobre a ponte que une todos eles. Afinal, sempre há tempo para começarmos algo novo.
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Foto da Capa: Freepik