Quando escrevo este texto, o sol bate na janela. Nunca imaginei pensar nos ruídos urbanos inevitáveis que vêm da rua como “silêncio”, mas a impressão que se tem é que finalmente, e sabe-se lá por quanto tempo, Porto Alegre está em silêncio. Não pela ausência de barulhos, dado que ainda se ouve aqui e ali uma buzina, um motor, algum eletrodoméstico em qualquer apartamento vizinho, mas simplesmente porque, sem o ruído da chuva se derramando como cascalho sobre a cidade, parece que finalmente alguém desligou uma máquina cujo ruído de fundo estava enlouquecendo todo mundo.
Chamar este momento de “pós-enchente” não é apropriado. A enchente segue – para ficar em Porto Alegre, apenas, o Humaitá ainda está embaixo d’água, onde foi esquecido pelo poder público sem um prazo de resgate no horizonte. Mas dado o retorno do sol para esta trégua que, pela primeira vez, a meteorologia prevê durar alguma extensão, certos balanços podem ser feitos.
Alguns deles são meio óbvios e vêm sendo martelados por textos e mais textos em toda parte (inclusive os meus): o poder público, principalmente em sua instância municipal, foi de uma incompetência tão atroz que desperta fundadas suspeitas de haver ali não incompetência pura e simples, mas leniência, “esperar pelo desastre como política pública”, algo que eu mesmo já escrevi aqui há alguns meses, e me parece fantástico pensar que aquele texto já faz tanto tempo e tão pouco. Agora que as águas refluem e o sol seca não apenas o solo mas ilumina um cansaço e um choque acumulado de um mês inteiro, acho que não tenho muito mais opiniões a dar. Estou mais preocupado com sensações e memórias.
Números
Assim como muitos de vocês, meus primeiros momentos foram de uma reação visceral ao que está acontecendo. Traduzido na catalogação obsessiva de números e medições, como se fosse possível por meio de algumas medidas específicas dimensionar ou dar um certo sentido e tamanho ao trauma de uma geração (mais um, aliás) vivido neste território de São Pedro desde o fim de abril. A página do Sistema de Hidro Telemetria da Agência Nacional de Águas era uma das poucas confiáveis a monitorar, por exemplo, a subida do Guaíba, cujos índices pra mim passaram a ser acompanhados com interesse que faz anos eu não dedico à classificação do Inter no Brasileirão – e nos dois casos, na maioria das vezes minha maior preocupação tinha a ver com rebaixamento. Limite de rebaixamento no caso do time, nível de baixa das águas no caso da telemetria.
Era o tema das conversas, os gráficos circulavam nos meus grupos de WhatsApp, mandamos um para os outros os números, apegados ao Guaíba descendo um ou dois centímetros antes da próxima chuva como se fosse o time economizando ou perdendo pontos em jogos fáceis antes do próximo desafio. Aí veio a notícia de que os medidores automáticos que alimentavam esses dados, de responsabilidade da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), talvez fossem tão imprecisos que sequer poderiam servir como parâmetro para saber quanto choveu ao todo.
Uma notícia banal sem muitas consequências, eu diria. Mas o modo como essa informação bateu em mim me fez ver o quanto nesse momento de deslizamentos, inundações, amigos que perderam tudo, parentes afetados, eu, que estive apenas uma semana sem água e que moro numa rua que só alagou uma vez estava desesperado por alguma informação confiável, e ao descobrir que aquela que eu vinha seguindo talvez não fosse digna de crédito, me senti afetado tanto no sentido de impacto quanto no sentido de uma reação pautada pelos afetos. O que me fez parar para pensar.
Solidez
Eu buscava talvez nos números a solidez que não encontrava pela janela, essa mesma em que agora o sol bate, mas pela qual eu acompanhava há um mês as cortinas transparentes de água. Eu buscava também um pé firme metafórico em um solo que se desagrega líquido e barrento, com pontes levadas, crateras abertas no meio das ruas, eu buscava algo que durasse enquanto a água levava parte da minha experiência de vida embora.
Como em tudo o que ocorre no Brasil, sabemos que os danos materiais foram bastante desiguais, com as mesmas e maltratadas classes precárias sofrendo o maior impacto não apenas das consequências da chuva como do descaso oficial. Mas uma coisa é certa nessa enchente: seu impacto não é apenas físico ou material. O trauma, o impacto, as perdas sentimentais atingiram praticamente todos os que têm ou já tiveram alguma relação de afeto com este Estado. É essa experiência comum que eu comecei a identificar enquanto tentava entender por que diabos a perda de uma referência tão pouco específica como a do medidor online do nível do Guaíba me importava tanto.
Houve muita gente que perdeu tudo: a casa, os móveis, os pertences, a mobília, os arquivos no computador, a caixa com os retratos, os documentos de compra e venda, os comprovantes de água e luz, os bibelôs de centro de mesa, as plantas, muitos perderam também seus animais, ou afogados ou perdidos. Logo, eu sei que meu desconforto é banal, mas em uma dimensão eu entendo uma parte mínima dessas perdas: a dos espaços, do cenário da vida, da criação de memórias.
Narrativas
Em seu O Narrador, um estudo sobre a obra do contista russo Nikolai Leskov, o intelectual Walter Benjamin defende a tese de que a narrativa como praticada socialmente por séculos, a de histórias tecidas como parte da vida e do trabalho comunitário, como parte de uma experiência social, havia morrido no mundo contemporâneo, e não transmitia mais sabedoria, mas simplesmente informação. Um dos exemplos que Benjamin usa nesse que é um ensaio sempre revisitado nos departamentos de Letras é o dos soldados que voltaram da I Guerra Mundial silenciosos, sem capacidade de articular o que haviam vivido no horror das trincheiras. A guerra os emudecera. Não tinham mais palavras, muitos nunca mais tiveram para definir o que viveram, apenas engavetaram o horror em algum ponto obscuro da consciência e seguiram a vida.
É um exemplo poderoso de como o trauma pode ser a ruptura da narrativa que contamos para nós mesmos sobre quem somos. Para que a história siga adiante e esse capítulo de ruptura seja de alguma forma interligado ao que veio antes ou que virá depois. Fazer isso é trabalhoso, e por isso a “edição” às vezes é mais fácil, suprimir, cortar, retirar, fingir que não houve. Penso nisso ao testemunhar a destruição não apenas física ou material, mas a destruição de memórias associadas ao que se perdeu. A escritora Júlia Dantas, em sua newsletter, coloca em palavras um pouco dessa sensação em um texto muito agudo, que recomendo.
No meu caso específico e desimportante, por exemplo, muitos lugares que são parte das minhas memórias mais caras estiveram debaixo d’agua no último mês. Sendo eu um cara que se importa com essas coisas, sebos, livrarias, cinemas, por exemplo, estão entre as perdas da memória. Um passeio pelo centro, por exemplo, doeu imensamente. A marca da enchente visível como uma cicatriz na parede da Livraria Travessa. A pilha de poltronas descartadas dos cinemas da Casa de Cultura, cinemas que evocam mais memórias do que posso compilar. A impressão de terreno bombardeado da Praça da Alfândega de tantas Feiras do Livro, a pilha de livros inutilizados pela cheia no sebo Só Ler, um lugar que eu nunca resistia em visitar quando andava por aqueles lados.
O círculo vai se amplificando pela cidade em ondas concêntricas à medida que pontos como o Urso de Varsóvia, na Cidade Baixa, ou uma banca de revistas no Menino Deus aparecem em fotos tristes nas telas do computador ou do celular. São lugares meus, não são necessariamente fundamentais ou sagrados para a vida da cidade ou mesmo do Estado. São apenas um azulejo na banheira de imersão lamacenta que nossa cidade se tornou. E eu sei que muitos aí fora, a maioria de vocês, olham para o sol na janela e, entre lavar a roupa que acumulou ou separar mais algumas doações ou se preparar para sair, talvez pense no seu próprio leque de experiências equivalentes: o bar que frequentava, o boteco em que jogava sinuca, a casa de amigos que frequentou, uma casa antiga em que morou, a padaria ou a venda das compras miúdas, a loja de consertos próxima de casa, a casa da sua mãe, a casa da mãe de alguém e que por um certo período de sua vida foi quase como a casa da sua própria mãe.
O sol voltou e a enchente deu uma trégua. É nas tréguas que contamos aqueles que perdemos. Nesta, contamos também aquilo que perdemos.
Foto da Capa: Acervo do autor
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