Quando minha filha tinha três anos de idade, perguntaram na escolinha o que os pais das crianças faziam. Um era advogado, outra, jornalista, outros, físicos, e assim foi. Até que, chegando na vez, Lina responde, sem titubear:
– Meus pais não trabalham.
– Não trabalham?
– Não. Eles só escrevem, escrevem, escrevem…
Passados oito anos, já tendo aprendido a escrever e se envolvendo cada vez mais em leituras e assemelhados, nossa filha já reconhece que o que fazemos (eu majoritariamente traduzindo, editando e revisando textos, e o pai escrevendo reportagens, artigos e livros – por encomenda e por gosto) e é, sim, um tipo de trabalho. Volta e meia, se aproxima de um de nós olhando para a tela e questionando o que é aquilo que tanto escrevemos, escrevemos. Tem vezes que a perplexidade dela com o assunto na minha tela é tão evidente, considerando que ela já sabe os tipos de interesses que me movem, que respondo com a frase que dá título a esta coluna: “É filha, as pessoas fazem coisas estranhas para ganhar a vida”.
A brincadeira é inspirada em algo parecido que o personagem de Tom Selleck, no primeiro episódio da série Magnum P.I., dos anos 1980, diz ao lembrar de sua participação na guerra do Vietnã. (Sim, sou fã de Magnum e do Tom Selleck, me deixem.) A observação me vem à cabeça normalmente quando me pego fazendo coisas como pesquisar termos sobre produção de vidros especiais de alta tecnologia ou me flagro compreendendo naturalmente o funcionamento do sistema elétrico de algo que até uns tempos atrás eu nem sequer sabia que existia – como volante de carro aquecido!
Chegando ao fim de mais um ano em que tirei o sustento do meu trabalho com textos (não à toa minha pessoa jurídica é Cássia Zanon | textos etc.), penso ainda no quanto já desejei e ainda desejo ter a disciplina para me especializar em alguma área, mas está cada vez mais difícil. Se antes da pandemia meus trabalhos eram mais restritos a literatura de ficção, psicologia e autoajuda na parte editorial e a TI, moda, mercado de luxo, turismo e gastronomia, por conta das vacas magras que assombraram esses setores de 2020 a 2022, acabei por abraçar todos os ramos que caíram nas minhas mãos. Para vocês terem uma ideia, em 2023, passaram por mim trabalhos de tradução, legendagem, edição e revisão de, entre tantos outros:
– Material promocional de uma torrefação de café
– Política de privacidade dos funcionários de uma empresa de entretenimento
– Manual de manutenção de carros de uma empresa automotiva
– E-mail marketing de uma empresa de logística internacional
– Manual de uso de churrasqueiras elétricas
– Livro sobre meditação
– Catálogo de produtos de SaaS de uma empresa de TI
– Livro sobre qualidade do sono
– Materiais de marketing digital de escritórios e profissionais do direito
– Livro sobre recursos humanos
– Cardápio de companhia aérea
– Catálogo de móveis de escritório de design
– Reality show coreano
– Manual de uso de equipamentos de cozinhas profissionais
– Receitas culinárias
– Cardápio de restaurante de cozinha contemporânea
– Livro sobre autismo
– Material de divulgação de produtos de higiene
– Livro sobre paternidade
Tenho noção de que, apesar de variada e meio idiossincrática, minha lista de atividades segue uma lógica. No fundo, tudo gira em torno de linguagem e histórias (mesmo que o enredo dos manuais de instruções do momento não sejam tão emocionantes quanto o dos romances cheios de cenas de sexo, profundos e sóbrios como dos artigos sobre política internacional, sintéticos como as instruções de uso de aplicativos móveis ou nonsense como os diálogos improvisados dos reality shows que passaram pelas minhas mãos, ajudando a pagar muitos boletos no caminho.)
E ainda tem este espaço aqui, onde tenho a liberdade de escrever sobre o que me der na veneta. Considerando o que relatei acima, somado ao fato de que mantenho o vício de jornalista de me manter informada (menos do que deveria, mais do que gostaria) sobre os assuntos do mundo, é fácil compreender por que a minha “linha editorial” na Sler pode sem medo de errar ser definida como caótica.
A dois meses de completar 50 anos, concluo: já que o foco não se apresenta, abraço a diversidade (ou entropia, que seja). Portanto, caro leitor, querida leitora, depois do meu período de férias deste site, que começa a partir desta coluna e se estende até janeiro, posso garantir: em 2024, seguirei assim, parafraseando o sucesso do Kid Abelha, falando de quase tudo um pouco e de quase tudo do melhor jeito possível. Bom Natal, boas entradas e até lá.