Eu acredito nos recados que as ruas dão. Não as ruas propriamente, porque elas são feitas da gente que nelas habita e circula. Sempre gostei de grafite, arte de rua, frases escritas em postes, muros. A poesia é feita para quem precisa dela, e caminhar na rua e enxergar uma frase que naquele momento pode dizer algo novo, ou algo que desloque do transe da vida contemporânea pode ser altamente terapêutico.
A arte de rua sempre carregou o estigma da marginalidade, do ilegal. A efemeridade desse tipo de arte também carrega algo da vida e do intangível que é se comunicar com o outro. A música “Gentileza”, escrita por Marisa Monte, foi inspirada na história do Profeta Gentileza, um pregador urbano brasileiro que ficou conhecido por compartilhar suas mensagens nas pilastras do Viaduto do Gasômetro, no Rio de Janeiro. O muro onde Gentileza tinha muito de seus escritos foi todo apagado e pintado de cinza pela prefeitura da cidade, dando origem à canção. Não queremos ver as palavras do outro, o discurso que não seja o meu. É para isso que a arte de rua existe. Para perturbar a ordem das coisas e a narrativa imposta das cidades e corpos. Eu acredito nela como força que se opõe ao instituído, como grito de incômodo frente às desigualdades sociais que assolam nosso país. Mas também como manifesto interior, das dores particulares que ao mesmo tempo são universais e que lidas por um outro encontram eco e irmandade.
Uma das coisas que mais amo fazer ao circular por cidades é descobrir frases e pichações escritas pelas ruas (Ah…, Lisboa!). Amo fotografá-las e passá-las adiante, porque entendo que vivemos tempos de empobrecimento emocional e de poucas ou rasas vasculhas de si. A arte nunca foi tão necessária, em todas as suas formas de manifestação. Enxergar uma frase escrita num muro que pode me dizer algo disruptivo, que gere identificação ou incômodo, tem um impacto bastante diferente de algo lido em um livro que escolhi ler, por exemplo. Gosto de viver com olhar flaneur sobre a vida, uma perspectiva errante, caminhante e observadora. Gosto de enxergar o que quase ninguém enxerga. Existe esse prazer meio infantil de saber que existe um mundo cifrado para quem tem desejo de saber mais. Um recado particular que consigo desvendar.
Carrego um sonho antigo de sair pela cidade riscando muros e postes, deixando frases que desacomodem as pessoas. Não sei quem vai enxergar minhas palavras e, ainda mais, lê-las. Gosto de pensar que provavelmente muita gente vai passar por elas sem tomar conhecimento de sua existência. Mas também sei que outras pessoas como eu poderão vir a sorrir ao ler algo meu, ou ficarão minimamente intrigadas e curiosas para entender o que essa ou aquela palavra significa, o que esse ou aquele trocadilho evoca. Não quero diminuir a força e motivação primeira da arte de rua, que é o manifesto, a voz da rua e de quem nela vive. Resgato ainda a palavra que usei mais acima: marginal. A voz de quem vive à margem, a voz dos excluídos, dos invisibilizados. Sei que é utopia, mas queria que todos tivessem voz, queria que todos tivessem seu espaço, sua escuta, seus direitos, seus tetos. Enquanto isso, eu grito pela poesia, pelo mundo de dentro, pelo que fica à margem dos olhos míopes da vida “útil”. Talvez esse meu pequeno muro aqui já seja um começo. Um espaço para quem quiser vir me visitar e olhar para o lado e para dentro de si.
“Nós que passamos, apressados,
pelas ruas da cidade,
merecemos ler as letras
e as palavras de Gentileza
Por isso eu pergunto
a você no mundo
se é mais inteligente
o livro ou a sabedoria.
O mundo é uma escola
a vida é o circo
Amor: palavra que liberta
já dizia o profeta”
Gentileza (Marisa Monte)
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Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais