Como boa parte dos meninos da minha idade, eu amava histórias em quadrinhos de super-heróis.
Gostava especialmente dos X-Men e do Batman. Os primeiros, porque acho que toda criança e adolescente se identifica com estes personagens mutantes que não se adequam bem à sociedade, que às vezes são perseguidos e julgados por serem diferentes. Já o homem-morcego me cativava pelo aspecto sombrio, soturno, por aquele ar de mistério. Eu sempre quis ser o adolescente misterioso, cheio de segredos. Mas eu era só tímido, mesmo.
Ainda hoje guardo simpatia pelos X-Men. Sou bastante interessado pela narrativa dos marginalizados, dos que não encontram um encaixe perfeito na cultura. Já com o Batman, agora tenho minhas ressalvas: não sei o quanto ainda me agrada a ideia de alguém que representa uma lei autoritária que pode estar em qualquer lugar, a qualquer momento.
Mas as revistas que eu gostava mesmo, que eu sempre esperava, eram as de uma série da Marvel chamada “What if”, em português, “E se?”. Como o nome já diz, eram histórias sobre realidades alternativas, mundos em que um pequeno incidente ou escolha mudou completamente os rumos da narrativa. E se Peter Parker não tivesse sido picado pela aranha radioativa que lhe deu poderes sobre-humanos? E se o Capitão América fosse um soldado russo, e não americano? E se o Professor Xavier não tivesse criado a escola para mutantes superdotados?
Era fascinante ver aqueles personagens que eu estava acostumado vivendo histórias tão diferentes. Havia algo de familiar, claro, mas a graça estava em identificar as diferenças. Peter acabou se tornando um reconhecido cientista. O Capitão América nunca usou o seu famoso escudo, mas se tornou um espião vira-casacas. Os mutantes tiveram que se organizar em guetos, não tendo o Professor Xavier como referência.
Aposto que você, caro leitor, também já se pegou vez ou outra imaginando como a sua vida poderia ter sido outra se tivesse feito uma escolha diferente lá atrás.
E se eu tivesse mudado de colégio quando meus colegas faziam bullying comigo? E se eu tivesse dito “sim” quando meus amigos me chamaram para aquela festa que acabou sendo tão marcante? E se eu tivesse tido coragem de dizer que gostava daquela menina do colégio?
Enfim, muitos de nós já nos pegamos devaneando sobre todas as vidas possíveis que poderíamos ter tido e que, por conta das nossas escolhas – forçadas ou deliberadas – acabaram ficando só como possibilidades.
Aliás, Freud mesmo já dizia que a criança, em certa fase do seu desenvolvimento, imagina para si pais mais nobres dos que os seus de verdade. É comum que fantasiemos uma origem diferente daquela que tivemos. Muitas vezes, isso aparece nas conversas cotidianas na escola: “Meu pai é astronauta”, “Minha mãe trabalha na NASA”. Não se tratam de mentiras, mas de versões glamourosas da família da qual somos filhos. Afinal, se na nossa linhagem corre sangue azul, ou se nossos pais são assim tão fantásticos, então também nós somos especiais, únicos, extraordinários.
Com o tempo, vamos nos dando conta que aquele pai é um astronauta porque vive com a cabeça nas nuvens, e que a mãe que trabalha na NASA é uma engenheira em uma construtora da cidade. E tudo bem, é isso mesmo: faz parte da vida desidealizarmos os pais da infância: só assim podemos nos ver também como mais uma pessoa entre outras no mundo, com nossos defeitos e qualidades.
O problema é que o inconsciente nunca esquece. Tudo aquilo que pensamos ou imaginamos fica registrado em algum lugar no nosso psiquismo.
Mesmo já adultos, uma parte de nós ainda é filha do pai astronauta ou da mãe que trabalha na NASA. E mais: nós também somos, em certa medida, todas as escolhas que não fizemos. Porque mesmo destas também ficam registros. E muitas vezes são esses “E se?” que nos assombram.
Todos os mundos não realizados habitam dentro de nós, seja como realidades que ficamos aliviados por não termos vivido – “E se eu não tivesse freado na hora certa?”, seja como universos ideais em que julgamos que tudo teria dado certo – “E se eu tivesse feito vestibular para Artes?”.
A vida que vivemos é uma entre tantas que nos habitam. Algumas vezes, quando ela está muito dura ou limitada, cai bem vasculharmos todas estas outras versões de nós mesmos que ficaram esquecidas e procurarmos por algo ali que talvez nos interesse viver hoje em dia.
Afinal, se até os idealizados super-heróis podem sonhar com outras vidas, porque nós, que não fomos picados por aranhas radiativas e nem nascemos com o gene dos superpoderes, não teríamos o mesmo direito?
Foto da Capa: Felipe Cespedes / Pexels