Uma história que parece ter começado em dezembro de 2009. Naquele momento tomei uma decisão difícil, pedida por uma circunstância pessoal. Voltava de Buenos Aires, depois de um ano em meio de uma vida planejada para me dedicar mais à minha formação psicanalítica, vivendo a cidade cuja efervescência cultural, política e afetiva me movia sobremaneira.
Em uma visita de férias à Porto Alegre, eis que me vejo sentada diante do computador, tendo meu avô como companhia e, mais do que isso, como testemunha de um suspeito e-mail no spam. Um e-mail que viraria as agulhas de minhas bússolas, por pelo menos algum tempo. Era o chamado de um concurso público que me havia esquecido. Vinha, justamente, em um momento de certa vacilação e saudades da família. Então, o e-mail me caiu como um certo golpe de sentido, uma dose de algo que estava um pouco perdido, apesar de gostar da minha vidinha portenha. De qualquer forma, sempre penso o que teria passado se não tivéssemos abertos juntos aquele e-mail… Na sua sabedoria, sem dizer o que eu tinha ou não de fazer, o avô apenas falou: é, agora tens uma decisão pela frente.
Dois meses depois, lá estava eu na Av. Farrapos, em Porto Alegre, tomando o ônibus Mathias Velho, entrando no bairro canoense de mesmo nome e seguindo até os confins da Av. Rio Grande do Sul. Lá comigo, apenas uma colega e chefe assistente social. Ainda que insuficientes como equipe, inaugurava-se assim um equipamento chamado CRAS – Centro de Referência de Assistência Social. Durante cinco anos estive nessa comunidade. Aprendi o que era CRAS, aprendi a admirar as assistentes sociais e a odiar ainda mais o assistencialismo e o uso político dos saberes técnicos, raras vezes pareados com o real atendimento das necessidades da população. Enfim, uma escola para uma psicóloga e, outras vezes, um tapa na cara de uma psicanalista que, se bem já tinha atendido em viés mais comunitário, não tinha ideia do que era território. A Mathias me fez entender nas vísceras a definição dessa palavra, sua importância absolutamente fundamental para qualquer política que se queira pública, ainda mais em um país tão vasto como o nosso, de tantos Brasis.
Além disso, foi na Mathias Velho que aprendi a ser psicanalista sem a necessidade de intervir enquanto uma, sacando ainda mais o que faz a riqueza da linguagem no laço social. Incrivelmente, foi lá também que encontrei outros sentidos para o que tomamos como lapsos de fala. Foi lá que tive a primeira oportunidade de realçar minha raça não por ser a única negra de meu entorno, mas por ser a única profissional na paleta de cores e nas texturas dos atendidos. A Mathias foi o meu caminho de volta para a negritude. Onde me lembrei que, às vezes, nada mais útil para ajudar a falar do que convidar para um café com bolo. Onde vi in loco coisas que gostaria de desver, mas que, por ter que fazer algo, não havia tempo para alimentar um horror fascinado. Outros olhares e outras fomes mais relevantes precisavam de atenção.
Famílias, comunidades, escolas, cestas básicas, benefícios, extrema pobreza, bolsa-família, vulnerabilidade social, freis, pastores, traficantes, donos de mercados, carne adulterada, assobios, “pode passar, psicólica”, foram palavras que entraram em meu universo semântico. Inundações da praia do Paquetá e falta d’água também viraram temas frequentes, sem que jamais – nem nos piores pesadelos, que foram muitos – eu imaginei ver as cenas que vi da Mathias Velho nesse último final de semana. Verdadeiramente último para muitas famílias e corações. Impossível, então, não lembrar rostos e situações.
Recordo que conheci lá uma moça que não tinha documentos, que nos contou que nunca tinha saído da Mathias, que nunca tinha ido “à Canoas” – curiosa forma comum por lá de referir esse centro, como o nome da cidade em que se está. Em parte, era como se a cidade em que ela estava nunca houvesse chegado até ela. E, de fato, até então, a pólis, o poder público era puro abandono.
Como não pensar nela e nas canoas que brava, mas, para muitos, tardiamente, chegaram à Mathias Velho? Penso em voz alta aqui: Querida, espero que tenhas conseguido sair! Mesmo que assim, a canoas, por primeira vez.
Foto da capa: Gustavo Garbino / Pref. Canoas
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