Publicado em 3/5/2024
As causas da tragédia das cheias do Rio Grande do Sul não são de agora, vêm de longe. Isso parece que já está ficando claro para todos. Administradores displicentes sem dúvida puxaram o gatilho, mas a arma foi sendo preparada lentamente durante muitos anos. No campo, por uma política ambiental predadora e inconsequente em busca do enriquecimento monetário. Dinheiro no banco. Na cidade idem, acrescida da incompetência política para enxergar evidências e tomar providências. A natureza é insensível à nossa arrogância e extravagância. Passa por cima e pronto.
Se não entendermos que precisamos mudar nossa mentalidade e escolher políticos que vão levar a sério a nova condição climática do mundo, novas tragédias, anunciadas, acontecerão com mais e mais frequência. A rotina de desastres não vai compensar o SUV novo na garagem.
A manchete da imprensa oficial paulistana anunciava: “São Paulo tornou-se a cidade mais sustentável do mundo na área de pavimentação.” Uau! Que maravilha! Será que finalmente entramos em sintonia com as cidades mais antenadas do mundo? Que nada, na realidade estão falando de recapeamento asfáltico e não de eliminação de pavimentos impermeáveis. A sustentabilidade anunciada está no fato de aproveitarem ao menos 50% do asfalto deteriorado. Essa pegadinha publicitária soa a deboche de quem acha que a crise climática é balela de ecochatos. O próprio termo ecochatos diz muito.
A Folha de S.Paulo (12 de março de 2024) nos conta que uma das principais bandeiras do prefeito Ricardo Nunes para se reeleger é o investimento de mais de 4 bilhões de reais em recapeamento asfáltico de 20 milhões de metros quadrados de pisos. Os números são impressionantes! Por que ele faz isso? Porque o asfalto dá votos. Essa é a verdade.
Sebastião Melo, de Porto Alegre, e posso imaginar quantos outros, asfaltam a rodo pelo mesmo motivo. Nosso prefeito até paralelepípedos tombados pelo IPHAN cobriu. Teve que raspar, contrariado. Descarregou sua raiva autorizando um prédio de 42 andares ao lado do Museu Júlio de Castilhos, também tombado. Antes autorizou outro de mesma altura no Quarto Distrito, um bairro que ele diz ter infraestrutura de sobra. A enchente o desmentiu, ficou tudo debaixo d ‘água. Não se deu por vencido e foi para a TV: “As pessoas moram onde não deviam morar”. Desfaçatez é palavra gentil para um prefeito assim.
Enquanto isso, Paris tem como meta arrancar 40% do asfalto da cidade, substituindo-o por verde ou pisos permeáveis. Estão organizando a “cidade de 15 minutos” para que o cidadão possa acessar o que precisar numa caminhada ou pedalando. A bicicleta passou a ser o veículo mais usado na cidade luz. Os automóveis perderam o posto, mas ainda são vistos em abundância. Já os SUVs, esses beberrões de combustível, estão sendo taxados sem piedade. Paris não os quer. O Brasil os ama.
O fenômeno é mundial. As cidades estão se reorganizando para o aquecimento global. A tragédia climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul não é pontual. Está varrendo o planeta.
Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo deveriam estar protegidas. Um sistema robusto de proteção foi construído: diques, muros e casas de bombas. Mas não estavam funcionando no dia em que o sistema foi posto à prova, não houve preocupação com atualização de equipamentos, manutenção.
Eldorado do Sul é um caso à parte. Uma cidade inteira foi construída abaixo da cota de inundação sem nenhuma proteção. Não por falta de conhecimento. Ela tem 35 anos de idade, posterior portanto às grandes cheias de 1941 e 1967. Sem autoridade que proibisse tamanho desatino, passou a ser uma nova frente de expansão da região metropolitana. Barata, sem dúvida, e com terras planas fáceis de ocupar. Um eldorado para os mercadores imobiliários. Só que, agora, casas, fábricas, depósitos, escolas, postos de saúde, tudo ficou debaixo d’água.
Como pode?
Negacionismo é a resposta. Cansei de ler e ouvir que uma nova enchente como a de 1941 só aconteceria em mil anos; que antes dessa data, nunca tinha acontecido; que tinham construído barragens rio acima; que, enfim, o sistema de diques era desnecessário, ultrapassado, inútil. Prefeitos sagazes se sentiram livres para gastar as verbas de sua manutenção em asfalto. Asfalto que o povo vê e sente: os carros rodam com suavidade, sem vibração. Dá voto.
Não sei que lição se tirará dessa enchente e por quanto tempo, mas recomendo aos políticos responsáveis que se empenhem em tornar obrigatório nas escolas uma aula sobre o sistema de diques que protegem algumas das nossas cidades. Se a Holanda vive abaixo do nível do mar sem problemas é porque lá todo cidadão sabe da importância de seus moinhos de vento. Até nós sabemos. Não é curioso? Sabemos mais do sistema de proteção dos holandeses do que do nosso.
Se não fizermos isso, a tragédia voltará assim que o negacionismo se restabelecer e o asfalto voltar a preencher nossos sonhos.
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Foto da Capa: Rio Tietê - São Paulo Capital