O dia 27 de janeiro foi designado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas como o “Dia Internacional da Memória do Holocausto”, o genocídio praticado pelos nazistas na 2ª Guerra Mundial, assassinando seis milhões de judeus, além de homossexuais, ciganos e comunistas.
Entre as vítimas da barbárie, estavam as pessoas com deficiência, alvos do primeiro programa de extermínio em massa da Alemanha Nazista. Este programa, que tirou a vida de cerca de 250 mil pessoas, foi batizado com o eufemismo de “eutanásia”, mas ficou mais conhecido pelo nome “T4”. É uma referência ao endereço do escritório de onde era coordenado o extermínio em Berlim: rua Tiergartenstrasse 4.
O nazismo dizia que a vida de uma pessoa com deficiência era uma “vida indigna de ser vivida”. Eram vistas como um fardo, um ônus financeiro para a sociedade e uma ameaça biológica, pois consideravam que comprometiam a pureza da raça ariana.
Em agosto de 1939, foi publicado um Decreto que exigia que médicos, enfermeiros e parteiras denunciassem os recém-nascidos e crianças com menos de três anos de idade que apresentassem sinais de incapacidade mental ou física. As crianças eram encaminhadas a uma instituição de saúde onde seriam mortas e seus corpos, cremados.
Diante do que seus idealizadores consideraram um sucesso, após o assassinato de mais de 5.000 crianças alemãs e austríacas, o programa foi ampliado também para adultos com deficiência. A partir daí, foi testada uma nova forma de matar pessoas: a câmara de gás, montada em uma espécie de reboque de caminhão onde era acoplado o cano de escapamento ou disfarçada de banheiro em algumas das instituições que operavam o programa de morte.
Muito embora o programa fosse acobertado por eufemismos, por instituições secretas e por atestados de óbitos falsos, as mais de 70 mil mortes levaram a protestos liderados pela Igreja Católica, fazendo com que Hitler determinasse publicamente a suspensão da T4.
Após alguns meses, a operação foi retomada e mantida até o final da Guerra. Os primeiros campos de extermínio (Belzec, Sobibor e Treblinka) foram operados pelos funcionários da T4 que utilizaram os métodos que haviam sido testados com as pessoas com deficiência: câmaras de gás para praticar o crime e fornos crematórios para apagar seus vestígios.
Entre esses centros de morte, estava o Instituto Psiquiátrico Steinhof e o local onde eram atendidos crianças e adolescentes: o Spiegelground. Lá, trabalhava um pediatra que você já deve ter ouvido o nome: Hans Asperger (foto da capa).
Asperger sempre argumentou que, por ser cristão, manteve-se à parte da máquina de extermínio, não aderiu ao nazismo e teria salvado vidas de autistas. Porém, o acesso a documentos encontrados no Arquivo Municipal de Viena pelo pesquisador austríaco Herwig Cezh contam uma história diferente, como esmiúça a historiadora Edith Sheffer em seu “Crianças de Asperger”.
Ela nos revela que Asperger foi um dos fundadores, em 1941, da “Sociedade de Educação Curativa”, quando a T4 já estava a pleno vapor. Entre seus parceiros, estavam os mais conhecidos assassinos de crianças de Viena, como os já citados Hamburger e Jekelius.
Em uma das reuniões da associação, Asperger recomendou com veemência que os “casos difíceis” fossem encaminhados para observação no sanatório que trabalhava. Uma dessas crianças, uma menina de dois anos, cuja internação “permanente” foi considerada necessária por Asperger, morreu dois meses após sua chegada à instituição.
A “educação curativa” selecionava as crianças para dois possíveis “tratamentos”: reabilitação ou eliminação. Como diz Edith Sheffer, “a morte se tornou uma opção potencial de “tratamento” no kit de ferramentas da eugenia nazista”.
Em 1942, quando uma edição do jornal Observador Popular, de Viena, publicou uma matéria sobre a “Instituição Municipal de Bem-Estar Juvenil”, de Spiegelground, mencionou os “profissionais de educação curativa” que trabalhavam lá. Dizia que seu trabalho “científico” protegia o volk, o povo germânico, das pessoas geneticamente doentes e associais, poupando as pessoas que produziam daqueles “fardos” cuja existência contrariava a natureza.
Naquele ano, Asperger era o “consultor de educação curativa” da comissão que avaliava a “educabilidade” das crianças de uma instituição infantil. Era o “pediatra sênior”, como aponta Donvan e Zucker em seu “Outra Sintonia”. Em um único dia, revisaram os dados de 210 crianças, concluindo que 35 delas eram “ineducáveis”, devendo ser enviadas para Spiegelground para a “Ação Jekelius”, isto é, para serem assassinadas.
Jekelius, aquele que foi contratado junto com Asperger pelo mentor de ambos e seu parceiro na criação da “Sociedade de Educação Curativa”, virou sinônimo de assassinato. Em seu currículo, também ostentava a qualidade de ser noivo de Paula Hitler, irmã do Führer.
Conforme os documentos já encontrados, pelo menos 789 crianças foram mortas no Spiegelground durante o período do Terceiro Reich. A maior parte delas foi de pneumonia, provocada pelo staff da clínica com o claro objetivo de matá-las. Outras foram deixadas ao relento no rigoroso inverno europeu ou tiveram sua alimentação suspensa até a morte por inanição. Destas, 44 foram comprovadamente transferidas para lá pelo pediatra Hans Asperger.
O dia 27 de janeiro também é o dia para lembrar dessas crianças e adolescentes que foram esquecidos por décadas, vítimas de um regime assassino e daqueles que deveriam cuidá-las e protegê-las.