Em 1975, Florestan Fernandes publicou seu livro “A revolução burguesa no Brasil”, em que ele insiste que não se deve confundir autocracia com ditadura. “Ditadura e democracia são formas de exercício do poder; ao passo que autocracia diz respeito às formas de organização do poder político”: no primeiro é o “como se exerce”, no segundo o “como se organiza”. E esta parece persistir como um princípio ordenador mais geral do Estado e da sociedade brasileira, inclusive em seus “momentos” democráticos!
Aquilo que Silviano Santiago chamou de “retórica da verossimilhança” (Uma literatura nos trópicos), em relação à dependência e colonialidade de nossa literatura em relação aos padrões europeus, parece encontrar na autocracia uma perfeita correspondência social: como forma de orientação ética das condutas no cotidiano, como forma de socialização familiar, como forma de estruturação das relações sociais, atingindo até os espectros político e ideológico, essa “retórica” parece que vem à tona com toda força neste nosso Brasil atual como forma de persuasão em que, no lugar da busca da “verdade” e das “provas factuais”, temos o “verossímil”, o que “aparenta ser” (o deltaniano “-Não tenho provas, só convicções!”). Assim, sob o manto de instituições democráticas, jaz um “ethos” autoritário e não basta simplesmente opor democracia à autocracia: “a sombra autocrática, em segundo plano, dizia Gabriel Cohn, pode emergir com maior ou menor virulência em situações de crise do poder burguês”. Assim, corremos sempre o risco de que, inclusive, a justiça de Estado (que deveria proteger os cidadãos do uso discricionário do poder) se torne corresponsável por conduzir uma situação autoritária oculta por véu de normalidade constitucional, incorrendo numa autocracia menos visível, mas igualmente eficiente. A historiadora Heloisa Starling observou que “quando os membros das altas cortes jurídicas passam a se conceber como espelhos da sociedade e acreditam que suas vozes são como expressões mecanicamente exatas do que a sociedade deseja, ficamos como que obrigados a aderir a essas definições, convencidos da superioridade de seus princípios e de seus valores sobre todo o resto da sociedade”.
Mas é preciso também considerar que, depois dos pós-estruturalistas franceses, nossa noção “correspondencial” de verdade (a correspondência entre o conteúdo dos enunciados e a realidade), ou, bem antes, o próprio conceito de “objetividade” da realidade (quer dizer, a existência de uma realidade fenomênica que não dependeria da observação subjetiva pelos sentidos), já vinha desabando: apareceu uma noção capilar, dispersiva e transversal de poder em que a velha noção baconiana de “Saber é poder!” fora invertida: “Poder é saber!” (Foucault), ou seja, o poder é aquela instância que pretende extrair de todos nós um saber nomológico, disciplinador e vigilante. Estávamos a um passo das “verdades alternativas”, das “fake news” e das “pós-verdades”… Só nos faltava a generalização das redes sociais, do cibertempo e do ciberespaço para que cada um se tornasse portador e divulgador da inverdade, do falso, do logro, da manipulação, do engodo. Tudo isso sem nenhum constrangimento moral!
Muitas vezes, basta o “verossímil” para satisfazer as expectativas da opinião pública conduzida por “crenças” e “convicções” sem fundamento fático, mas suficiente para amarrar os laços que dão o sentimento de pertencer a uma “comunidade” de interesses, já que, no Reino das Aparências, não precisamos mais da verdade ou de comprovações factuais. Até que se prove o contrário…
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