Muito escrevo sobre mim nesta coluna, resgato minhas experiências e as superações que o ano colocou em meu caminho. Para os próximos encontros aqui, gostaria de compartilhar com vocês um pouco sobre a forma como vejo o mundo a partir destas experiências de vida que tenho tido ao longo dos meus 45 anos.
Nasci em uma cidade de imigração alemã e não percebi por muitos anos que a minha identidade de criança e adolescente negra fora marcada e desestruturada pela ação silenciosa do racismo. Cresci ouvindo a seguinte frase de minha mãe: “Somos pretos então precisamos andar limpos e estudar.”
Ela tinha razão: para nós pretos a educação era o caminho de salvação. Nem todos conseguiram (os da geração dos meus pais, por exemplo) usufruir dela, e os que conseguiram não saíram ilesos da reprodução do racismo institucional nas escolas.
A maternidade e a formação acadêmica impulsionaram um desejo de fazer algo mais estruturado e intencional fora dos espaços formais de educação e, assim, nasceu o que chamamos hoje de Projeto Social Oorun, que é o meu jeito de ver o mundo.
O início desse projeto foi no dia 07 de janeiro de 2020, quando publiquei em minhas redes sociais o desejo de dar aula de alfabetização e reforço escolar para crianças negras carentes nas regiões de Novo Hamburgo e São Leopoldo/RS.
Ao perceber que a ideia viralizou e repercutiu nas mídias de jornais e tevês do Brasil. Analisei que a visibilidade poderia ser uma oportunidade para ampliar a ideia inicial de aulas de reforço e alfabetização, rumando para a fundação de um projeto social.
Meu desejo sempre foi de que a proposta fosse “iluminar” a vida de crianças negras e suas famílias. Pesquisando na língua yorubá o significado de “sol”, cheguei à palavra que nomeou o Projeto Social Oorun.
Dos meses de janeiro a março de 2020, as sete crianças inscritas no projeto iam até o apartamento da professora em duplas ou em grupo e ali ouviam histórias, realizavam releituras de obras de arte, brincadeiras e propostas que levavam o protagonismo preto para as infâncias.
Com a chegada da pandemia no Brasil, foi necessário suspender as atividades presenciais e as atividades do projeto ficaram até o mês de outubro voltadas para palestras, lives e formações pedagógicas.
No mês de outubro, retomamos as atividades na modalidade online, abrindo editais de inscrições tanto para as crianças quanto para os cargos em psicologia e assistência social.
Encerramos o ano de 2020 com 23 crianças inscritas, uma psicóloga voluntária e o desejo dos pais que gostariam que o projeto se mantivesse online uma vez que os inscritos eram de diferentes cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
No ano de 2021, realizamos oito encontros virtuais com convidados apresentando nas propostas o tema dos reinos africanos, com o envolvimento de 25 crianças inscritas moradoras de diferentes cidades do RS, SC e SP. Na última reunião do ano, com a presença dos familiares, foi apresentada a identidade visual do Projeto Social e do Espaço Oorun.
Além de envolver crianças, chamamos, via edital, voluntários para atuarem de modo virtual e presencial. Os profissionais selecionados formam um grupo de 15 pessoas de diferentes estados do país: São Paulo, Paraná, Bahia e Rio Grande do Sul.
No ano de 2022, o projeto conquista o seu território físico e inicia o planejamento da fundação do Espaço Oorun, a sede que abrigará atividades ancestrais e culturais voltadas para as infâncias pretas. Além das atividades mensais com as crianças, a implantação do Ciclos formativos, momentos de formação pedagógica oferecidos para a comunidade.
Em 2023, além das crianças, o Oorun realizou atividades para mães de crianças negras e também para mulheres negras nas cidades de São Leopoldo e Novo Hamburgo.
Vivenciar o protagonismo também foi uma das propostas do ano quando levamos um grande grupo de crianças para assistir à animação A Pequena Sereia no cinema.
Nunca poderia imaginar que teríamos uma sede para nosso projeto. Este espaço contemplará à comunidade local, com a ocupação de um território pensado para as infâncias através das afroperspectivas. Teremos neste local uma biblioteca comunitária, uma sala para atividades extracurriculares no contraturno escolar das crianças, um palco para apresentações artísticas e espaços de contato com a natureza.
Enquanto projeto de sociedade, nós temos os seguintes valores: ancestralidade, diversidade, respeito, comunitarismo, relação com a natureza e conhecimento.
Nas ações pedagógicas abordamos alguns pilares importantes como arte, comunidade, infâncias, ancestralidade e natureza.
Arte: neste pilar no Oorun apresentaremos produções dos povos africanos e como as suas manifestações compõem os modos de existência destes, através da musicalidade, religiosidade, tecelagem, modelagem e pintura, entre outros elementos.
Comunidade: a educação que almejamos necessita da participação das famílias das crianças, dos moradores do bairro e de todos os envolvidos com a proposta. Ouvir, participar, decidir e compreender as possibilidades com as quais a comunidade pode se fortalecer na coletividade, construindo um entorno fortalecido.
Infâncias: as infâncias necessitam de cuidado e de uma proposição de valores ancestrais que possibilitem a se constituir como protagonistas de suas histórias. Entendemos que o desenvolvimento infantil necessita do brincar, de uma relação integral com a natureza, da alimentação adequada para o seu desenvolvimento. Além disso, acreditamos que a educação e a cultura projetam os sujeitos pretos em um patamar de autonomia, antecipação dessa autonomia e do fortalecimento das comunidades que formarão.
Ancestralidade: “Nossos passos vêm de longe” (Jurema Werneck). Saber o que as antecedeu, reconhecendo a África como origem e base do que nos constitui como povo atualmente; compreender os valores civilizatórios africanos que nos conectam com o passado e nos impulsionam para o futuro.
Natureza: a relação com o ambiente natural do Espaço Oorun será uma oportunidade de conexão com os elementos e com os tempos que são fruto dessa relação. Cuidar, observar, interagir, semear, colher estarão presentes em nossas práticas.
Chegar em 2024 celebrando quatro anos de um trabalho que foi gerado pela ancestralidade e me dado como guardiã é algo inexplicável! Me alegro em dividir com vocês a nossa trajetória e deixo o convite para acompanhar mais de perto o que sonhamos (@espaco.oorun).
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá.