Há coisas que a gente sabe e sempre soube, mas devido a não dedicar muito tempo pensando naquilo, a vida tem umas maneiras engraçadas de nos lembrar delas. Peguem por exemplo o recente livro Que bobagem! pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério, recentemente lançado pelo casal Natália Pasternak, microbiologista que se tornou uma figura midiática durante a pandemia, e Carlos Orsi, jornalista e divulgador científico. Não li ainda o livro, e com o tanto de leituras na minha pilha, não sei se lerei tão cedo (uma das melhores coisas de não estar mais trabalhando em veículo diário é não precisar ligar para esse hypes que vocês aí inventam). Mas, como qualquer pessoa com acesso à internet, chegaram a mim ecos da sua repercussão polêmica.
Os autores declararam aqui e ali que tinham a intenção de abrir o debate sobre a naturalização de pseudociências como “alternativas válidas” de conhecimento, e não tenho por que não acreditar neles. Ao mesmo tempo, não sei se a escolha do título provocativo não recaiu na mesma armadilha conceitual que já vi ambos criticarem em outras ocasiões em textos em seu portal “Questão de Ciência”: fazer a provocação sobressair mais do que a discussão pretendida, que se perde no sensacionalismo de ocasião que faz a imprensa repercutir apenas que dois divulgadores científicos, uma delas uma pessoa razoavelmente famosa, incluíram terapias reconhecidas pelo conselhos médicos no rol das “bobagens”, igual à Ufologia, por exemplo. Tendo a concordar com os autores quando chamam homeopatia de bobagem. Nem de longe tenho a mesma convicção no que diz respeito à psicanálise, mas a questão é que não me parece ter sido esse o centro das discussões, desviadas pelo barulho de fundo de quem “não leu mas já não gostou”.
Polêmicas
A própria repercussão parece estar mais focada no status de celebridade recente de Natália – e imagino que ela não tenha como mudar isso, mas fico me perguntando se era necessário que o título fosse tão combativo uma vez que já vi gente disposta a desgostar do livro simplesmente porque desgosta vagamente dela como personagem (sim, é absurdo, eu sei, constrangedor até, mas o fenômeno existe). Tanto que me arrisco, sem ter lido o livro, a dizer que nada ali deve ser radicalmente diverso do que já foi explicado em outros livros de outros divulgadores científicos, inclusive já editados no Brasil.
Assim, de cabeça, me lembro, por exemplo, de Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas: pseudociência, superstição e outras confusões dos nossos tempos, de Michael Shermer, um cara que já veio até para o Fronteiras do Pensamento há 10 anos. Esse eu li, e posso dizer que, apesar do título aparentemente mais conciliador, seu conteúdo é ácido, incisivo, direto o bastante para quem acredita nas pseudociências se sentir particularmente ofendido (o que, convenhamos, considerando essa extração específica do quadro demográfico, não é difícil). Mas a repercussão parece ter ficado mais restrita, tanto que não me lembro de ter gerado esse mesmo debate amplo e esse barulho todo. O título não é agressivo, o autor não é uma celebridade recente. Prova, talvez, de que o título do livro da Natália e do Orsi tenha sido uma boa escolha, e eu que estou errado. Mas não era esse o meu foco neste texto.
Quando li algumas coisas SOBRE o livro Que Bobagem, tinha a ideia de que uma das principais polêmicas seria a inclusão da psicanálise, e sabia que as objeções seriam inevitáveis. O que eu jamais imaginei, talvez por pura ingenuidade, reconheço, é que ainda estaríamos a esta altura do campeonato lidando com gente que defende a astrologia nesse rolê.
Astros sem ciência
Aparentemente, há pessoas que não vêem contradição nenhuma em apontar (corretamente) que é meio absurdo o governo atual reconhecer a ozonoterapia mas também achar que está tudo bem numa “ciência dos astros” que não leva em consideração o que realmente se sabe sobre os astros.
A questão aqui é a seguinte. Como alguns outros “saberes”, essa palavra guarda-chuva da moda para doideiras que não têm comprovação mas que você curte, ao contrário dos delírios dos outros, que são bobagens negacionistas, havia uma intenção científica na astrologia em suas aplicações originais em sociedades antigas. Sem telescópios o homem já via que o céu se modifica com o passar das horas e das estações (alguns achavam, no entanto, que era só o céu que se movia, não a Terra). Também não passava despercebido o efeito de algumas dessas movimentações na própria Terra, seja na duração do dia ou no vaivém das marés. Algumas repercussões desses primeiros insights estão conosco até hoje, como a divisão de um dia em 24 horas, feita originalmente pelos babilônicos para que dia e noite tivessem cada qual 12 horas, em referência aos 12 signos do Zodíaco.
Só que, veja, a ciência descobre novas perspectivas com o tempo e vai abandonando o puramente anedótico ou inexplicável. No momento em que a astronomia se torna cada vez mais complexa, chegamos ao ponto em que as mesmas pessoas que defendem a astrologia já precisam de algum modo justificar que ela não tem nada a ver com astronomia, o que é um tremendo contrassenso.
A serpente
Vocês talvez sejam meio jovens ou estivessem distraídos mas eu me lembro bem da época em que astrônomos declararam que, se a astrologia de fato estivesse usando a observação do céu para guiar seus postulados, então deveria haver um 13º signo, porque o céu descrito na antiga astrologia não corresponde mais ao que se sabe do céu “real”. A posição no céu do Sol em fins de julho não está ainda na constelação de Leão, por exemplo, mas o signo começa a ser “computado” em 22 de julho. E, tecnicamente, entre 30 de novembro e 18 de dezembro, o Sol estaria na verdade passando por uma 13ª constelação deliberadamente ignorada pelos babilônicos nos tempos antigos, Ophiucus, preferindo fundir esse “signo da serpente” com o do “escorpião” (imagino que a criatura resultante daria um bom monstro para ser morto no jogo The Witcher, por exemplo, mas divago). Alguns também acreditam que os babilônicos não tivessem como perceber essa 13ª constelação, mas o efeito é o mesmo.
Embora o reconhecimento moderno da divisão dessas 13 constelações date dos anos 1920, por algum motivo que desconheço porque aí quem estava distraído era eu esse debate ganhou a consciência pública ali pela primeira década deste século, depois que a Nasa publicou algo a respeito, lembrando inclusive que a esta altura o eixo da terra já não é mais o mesmo de cinco ou seis mil anos atrás.
Oráculos
Uma das características do pensamento oracular, contudo, é ser impermeável à realidade. Basta uma mãe Dinah da vida aparentemente ter “acertado” uma única previsão e ela pode passar as próximas décadas sendo convidada para reportagens de TV e matérias de “previsões de fim ano”. Curiosamente, a mesma imprensa que agora descobriu a necessidade de “fact checking” na política não parece ter se dedicado ainda a prever quais previsões dos seus entrevistados de primeiro do ano foram consideradas realizadas no dia 31 de dezembro.
Com o episódio esse do Serpentário ocorreu o mesmo, e o que se viu foi hilário. Data dessa época, primeiro, uma mudança mais radical no discurso astrológico, de “ciência dos astros” para alguma coisa que agora o campo argumenta que “nunca foi dito que é ciência”. A difusão por toda parte da ideia de que uma “disciplina” que baseia suas conclusões em uma coisa que chamam literalmente de “mapa astral” na verdade não está descrevendo um mapa astral, e sim um “percurso simbólico”, e que a astrologia não é um fenômeno de predições, mas de “autoconhecimento”. Curiosamente, filosofia também é um meio de autoconhecimento, mas vimos mais astrólogos explicando a pandemia na grande imprensa do que filósofos (e quando vimos, bem, foi o Pondé).
Então a situação é a seguinte: a astrologia é uma disciplina que, baseada em cálculos matemáticos que fazem referência à posição dos astros, chega a conclusões que, para serem aceitas, exigem o descrédito ou o “adaptação” da verdadeira posição dos astros para “dar certo”. E quando se aponta esse fato, sempre alguém está disposto a levantar o dedo e a lembrar que “já fez mapa astral” e que “deu bem certo”. Bom, é o mesmíssimo princípio de consultar uma cartomante: quem foi crédulo o bastante para ir lá vai procurar avidamente qualquer indício de que as “previsões” são acertadas e de que “as coisas se encaixam”, e não simplesmente de que pagou para ser feito de otário.
Minha resposta a isso é um trecho do livro de Michael Shermer de que falei neste texto, sobre os problemas do pensamento pseudocientífico:
“Anedotas não fazem uma ciência: Anedotas – histórias recontadas para dar sustentação a uma afirmação – não fazem uma ciência. Sem evidência corroborativa de outras fontes, ou provas físicas de algum tipo, dez anedotas não serão melhores do que uma, e uma centena não será melhor do que dez delas. Os casos são relatados por contadores de histórias humanos, falíveis.“
É assim que se faz má ciência, certo, mas é assim também que, em terrenos que nada têm a ver com a ciência no seu sentido estrito, pessoas leigas procuram qualquer argumento que comprove aquilo em que já acreditam para não precisar dar o braço a torcer às evidências.
Nós vimos bem nos últimos quatro anos a que ponto isso pode nos levar.