Toda vez que passo pelo Asilo Padre Cacique é como se eu atravessasse um portal que me leva para uma outra dimensão de Porto Alegre. Um misto de epifania e decepção se abate sobre mim, se é que é possível esses opostos se juntarem. O ufanismo vem de ver aquela construção tão simples expressando beleza e dignidade. Junto, me vem à mente, como um sopro, a pergunta: onde foi parar essa cidade que construía edifícios com essa qualidade para desamparados?
Não consegui descobrir o nome do arquiteto que o desenhou, o site do asilo aponta apenas para o engenheiro Álvaro Nunes Pereira como o responsável pela obra. Talvez nem tenha havido um. Havia uma sabedoria no construir dessa época que era distribuída socialmente entre clientes, arquitetos, mestres e práticos. Um consenso sobre o que era construir com arte.
Claro, os especialistas reconhecerão que não estamos diante de uma obra de arte de alta erudição como o Pão dos Pobres, projetada por Joseph Lutzenberger, construído para amparar as viúvas e os filhos das vítimas da Revolução Federalista encerrada em 1895, ou o orfanato para meninas órfãs Pia Instituição Chaves Barcelos. Esse último, também projetado por desconhecido, mas certamente algum arquiteto com excelente formação. Não é incrível pensar nos recursos que algumas famílias muito ricas daquela época dispendiam para levantar edifícios para abrigar necessitados?
O Asylo, em especial, me chama a atenção porque não esconde sua singeleza. Fico imaginando a dificuldade que o padre Cacique de Barros teve em juntar recursos para a compra de materiais e pagar a mão-de-obra. Se percebe isso no resultado, não se vê nele expressão de riqueza ou poder dos beneficentes. Nem por isso, ele deixa de ter uma composição muito bonita, é extremamente funcional e goza de grande solidez. Logo, logo chegará aos seus 150 anos com muita dignidade.
Não tenho como não trazer a questão: em que estado estará a maioria dos edifícios que se constrói hoje depois de um século e meio? Não quero nem pensar.
O edifício também é harmoniosamente bem implantado no terreno, mostrando domínio pleno da paisagem circundante. Ainda mais agora que se pode vir desde a av. Edvaldo Pereira Paiva, olhando frontalmente para ele. Parabéns para quem teve a sensibilidade de abrir a rua Fernando Lúcio Costa com essa perspectiva inteligente e sensível.
Dois claustros, um masculino e o outro feminino, separados por uma igreja, têm a torre do sino em destaque no centro da fachada. Para quem nunca parou ali, vale a dica: peça para conhecer os pátios internos. E, claro, a igreja. É como uma visita ao tempo das coisas simples, feitas com cuidado. Ali se respira paz e, por alguns momentos, brota uma fé na humanidade, que infelizmente não sai do asilo com a gente.
O Asylo foi feito para acolhimento dos pobres, não foi feito para expressar riqueza ou poder, ou mesmo glória aos céus católicos, ainda que haja a torre da igreja num segundo plano, atrás da fachada principal.
É certo que outros edifícios deste período, públicos em sua maioria, também mostram uma arquitetura de muita qualidade, a melhor que conseguimos realizar até agora em nossa cidade em termos de quantidade de obras significativas, ainda mais se levarmos em conta a dimensão da cidade à época. Foram décadas de ouro, não voltaram a acontecer. Devíamos estudar mais as razões do descaso que a arquitetura passou a sofrer depois disso.
É essa constatação que me trouxe a angústia. Queria saber onde foi parar o gosto pela boa arquitetura, pelo fazer edifícios com dedicação e cuidado para atravessarem os séculos? Será que a ideia de uma vida passageira nos impregnou de tal forma que passamos a construir tudo de forma descartável? Não seria isso uma forma egoísta de tratar nossos descendentes? Estamos construindo o patrimônio do amanhã que vai orgulhar nossos netos e bisnetos?
E o que dizer da incapacidade de se investir no acolhimento dos necessitados, como se fazia então? Não digo que não existam doadores conscientes de seu papel social, existem, mas a verdade é que os recursos de maior vulto que eu tenho visto têm sido direcionados para o desfrute da própria classe dos endinheirados. E não deixam de expressar, em letras garrafais, seu gesto de desprendimento.
Todos os textos de Flávio Kiefer estão AQUI.
Foto da Capa: Asilo Padre Cacique / Wikipedia