Perdi as contas de quantos eventos sobre o desastre deste ano no Rio Grande do Sul tenho acompanhado. E tenho percebido algumas questões que têm me promovido alguns desconfortos. Alguns diriam que seriam borboletas no estômago. Ao voltar aos estudos, à intensa leitura de autores que ampliam a percepção sobre vários ângulos, estou enxergando texturas, cores e formas que jamais tinha vislumbrado.
E quanto mais estudo, conecto um ponto ao outro, mais me dou conta de que não sei. Como é cruel essa disparidade de falta de percepção do que está acontecendo no mundo, na aldeia, em relação ao que a natureza está comunicando. Como é importante poder trocar. Receber e dar feedback. Comentar o que se entende, o que não compreende.
Hoje, com as redes sociais, com tudo que tem acontecido, parece que as certezas estão cimentadas nas consultorias que não vivem a nossa realidade. E os que estão interpretando e dizendo como são as regras do jogo, estão divulgando pontos bem diferentes do que está na Constituição, nas leis e, principalmente, nos livros de ciências.
O evento ‘A ciência no enfrentamento ao desastre de 2024 no RS: da emergência à reconstrução’, no dia 4 de dezembro, teve como pauta central a governança. E ficou explícito: temos gente capacitada tecnicamente, temos inteligência social. Porém, apesar de termos 25 instituições de ensino superior e exportarmos talentos acadêmicos, precisamos de ajuda para dar conta do tanto que precisamos fazer. É muito cacique para pouco índio, alguém pode dizer.
Como faz falta uma articulação política, uma diplomacia articulada, gente que seja respeitada e saiba conduzir essa imensa orquestra de “autoridades” que mal sabem tocar um instrumento. Arrisco a afirmar que nossos parlamentos, com exceções, é claro, estão repletos de gente que só está ali porque algum setor botou grana para ele ser eleito para defender os interesses de alguns.
As instituições públicas, aquelas que são essenciais diante de um novo desastre, estão doentes. Faltam servidores de carreira que conheçam os meandros da máquina pública. E é comum encontrar aqueles que querem trabalhar, fazer acontecer, mas são colocados na geladeira por questões ideológicas. A vontade política para a roda girar pelo bem da maioria parece que anda viajando por aí. Quem sabe andou pelo Azerbaijão, onde ocorreu a Conferência do Clima, Nova York ou Japão? O tal pegar junto, que tive o privilégio de ter vivenciado nos tempos do governo de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, é algo que tem movimentado aqueles que querem erguer arranha-céus em áreas vulneráveis a cheias.
Seria um dos lados da arrogância da nossa cultura gaúcha ignorar que quem dá as cartas é a mãe natureza? Seria alguma face das raízes do eurocentrismo crédulo de que o presente deve ser construído com a exploração nos moldes do século passado? Suspeito que haja gente que acredita que a lei da gravidade pode ser mudada. Que o planejamento territorial pode funcionar sem considerar a bacia hidrográfica? Por que os municípios não se dão conta de que uma cerca foi um recurso inventado pelo Homo sapiens demens (como diria o Edgar Morin)? Por que os comitês de bacia, o parecer dos técnicos concursados e a alteridade não são valorizados pelos governos? Por que as instâncias de participação instituídas por lei, como conselho de meio ambiente e conselho de desenvolvimento urbano, estão sendo manipuladas?
Ora, deixa de ser ingênua, que perguntas tolas. Hoje, o que alguns mandam, pressionam, beneficia uma minoria. A coletividade e a qualidade de vida da maioria que se explodam.
Todos e todas que encontrei no evento (uma das boas coisas de eventos é exatamente isso, o olho no olho, o abraço) e que entendam minimamente dos retrocessos que estamos vivendo estão apavorados de tantas bombas contra mecanismos de proteção ambiental, contra as conquistas civilizatórias que estão sendo armadas.
É tanto ataque, por terra, por água e por ar! E a potência de comunicar tem servido para quê? Para manter quem mente do poder? Será que gostamos de ser manipulados, enganados? Se chover um pouco acima do que a drenagem dá conta na Capital, alaga tudo de novo. As quedas de energia são frequentes. Os sistemas de prédios do Moinhos de Vento saem do ar ao mesmo tempo que o freezer da dona Maria no Sarandi derrete toda a comida que tinha guardada para a outra semana. E a privatização, serviu para quê mesmo?
Por terra, a artilharia pesada tem sido usada justamente daqueles que precisam do ciclo da água para prosperar. O setor que vive das plantações – seja de eucalipto, soja, arroz ou trigo – está infiltrado no governo do Estado e consegue tudo que quer: flexibilização do Código Estadual do Meio Ambiente, passar por cima do Sistema Estadual de Recursos Hídricos e até pedir vistas de uma moção que pedia mais proteção ao Pampa em uma reunião do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Clique aqui para saber mais. Assim como o setor das construtoras está dançando juntinho com a prefeitura de Porto Alegre. E a sombra nas cidades, como fica com o calor escaldante do verão, se o manejo feito pelas concessionárias não tem cuidado algum com as árvores?
Por água, que sempre vai querer passar, um projeto de emenda constitucional (PEC) para privatização das praias estabelece mecanismos para venda de áreas à beira-mar que são de propriedade da União. Na quarta, dia 4, um pedido de vista para mais tempo de análise adiou a votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. A PEC, se virar lei, revogaria um trecho da Constituição e permitiria a transferência de propriedade desses terrenos para estados, municípios e entes privados.
E por ar, os pilotos agrícolas estão faceiros porque conseguiram tornar sua atividade de relevante interesse social, público e econômico? Além de ser uma profissão perigosíssima, conheci jovens que morreram em acidentes. Os aviões jogam veneno em lavouras que, com o vento, espalham substâncias para outras propriedades. Mais uma vez, os caras não querem entender que existe risco à saúde, aos ecossistemas e que a produção de orgânicos será prejudicada se houver gente lançando agrotóxicos pelo ar.
A nossa saída é parar e repensar tudo. Fazer exercícios de respiração. Observar a natureza. Acompanhar o movimento dos pássaros. Sentir o vento no rosto. Sentar à sombra, longe do barulho do trânsito. Aproveitar o lado bom da cidade cheia de exposições de arte. Cantar, relaxar, ouvir a FM Cultura, que ainda está no ar. Ah, Porto Alegre, as pessoas que têm algo mais no coração e nas mentes de boa vontade precisam se nutrir, se unir para encontrar saídas que não sejam o aeroporto.
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Foto da Capa: Marcello Casal / Agência Brasil