Estão sendo anunciados, com frequência cada vez maior, convites, convocações que expressam o desejo de escutar propostas diferentes das nossas. Não só dentro do Coletivo Porto Alegre Inquieta, que tem a escuta como ferramenta norteadora. São encontros, rodas de conversa, entrevistas … motivos para abrir espaço onde todos e cada um possa falar sobre os mais variados assuntos, principalmente relacionados às realidades de nossa Cidade. Confesso que toda vez que recebo um convite desses, algo aperta no meu coração. Na maioria das vezes, percebe-se que o convite é realizado por alguém que já têm o que dizer na ponta da língua, e sua real expectativa é ter suas propostas apoiadas.
No meu entendimento, escutar deve começar pela fala do outro, sobre suas curiosidades, seus interesses, suas dificuldades, entre outras muitas questões relacionadas ao tema que for apresentado. Mas a realidade não é sempre essa. O que vejo muito é o promotor do encontro falar, expor sua ideia, formular sua proposta e esperar que o outro fale, para, então, ser escutado. Incômodo maior começa a ocorrer quando ninguém fala. Qual será o motivo disso?
Permito-me formular uma pergunta que não cala no meu pensamento: aquele que faz o convite está em posição efetivamente neutra, com a alma em paz, numa posição de aprendiz, para compreender o significado, a importância, o valor que o outro dá ao assunto, sem a necessidade de uma preleção inicial?
Para apontar o cerne deste meu “desconforto”, lembro Rubens Alves, que certa feita disse: “sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar… ninguém quer aprender a ouvir.”
Na primeira vez que li seu texto, fui atrás de quantos cursos estavam disponíveis de oratória e quantos de “escutatória”. Tive que concordar com ele que “escutar é complicado e sutil”.
Pesquisei, pratiquei e ensinei a muitos alunos, que precisavam coletar dados e informações relativos a seus propósitos de TTCs ou Dissertações, sobre a diferença de ouvir e de escutar. Veio a primeira indagação: qual é o canal pelo qual a gente escuta? A resposta predominante, como esperado, foi “pelo aparelho auditivo”. Várias escutas das justificativas das respostas dadas levou ao entendimento: para ouvir, o aparelho auditivo; para escutar, o olhar, o sentir, o perceber o clima do ambiente.
Quando cada um, ao dar-se conta que a escuta ocorre pelo olhar, pelo sentir, pelo perceber o clima do ambiente, as reuniões em sala tornavam-se mais de escutatória, do que de ouvir o que o outro diz. Ler o texto encaminhado para estudar é diferente de acolherar letrinhas de compreender o que o autor deseja dizer.
No caso da escutatória, por exemplo, passa a ser necessário ouvir corretamente, entre outras coisas, o que é dito pela movimentação dos lábios: estão firmes? Tremidos? Com a boca em posição de sorriso? A testa está serena? Está franzida? As faces estão pálidas? Rosadas? Coradas? Os olhos brilham? Estão olhando para o interlocutor? Ou estão olhando para baixo? Estão fechados? O olhar está sem foco? O sujeito está relaxado? Sentado ou em pé? As pernas estão cruzadas, uma na frente da outra? Os braços estão soltos? No colo? Apoiados na mesa a sua frente ou nos apoios laterais de sua cadeira? Como está sua respiração? O número de questionamentos que permitem a escutatória aumentavam cada vez que a intenção era realmente ouvir de fato o outro, reconhecendo e dando importância ao pensar, à visão, ponderação do seu interlocutor. O número de aspectos a serem escutados são inúmeros. O sujeito pode não formular palavra alguma, mas está me dizendo se está presente ou não, se está acompanhando o raciocínio formulado na roda, ou não.
Quem vai para ouvir se dá conta ou está pronto para o que realmente deve escutar?
Endosso o parafraseado do Rubens Alves referente ao expresso pelo poeta Alberto Caeiro, voltado para a simplicidade e as coisas puras de: “Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz, sem logo dar um palpite melhor”. Não existe o tempo de refletir e processar o que se ouviu. Entre uma fala e outra é importante o momento da pausa interna para perceber o outro e não já estar com a frase pronta, elaborada, enquanto o outro falava. O que acredito seja fundamental é que a atenção devida ao outro seja de incluí-lo na conversa. Quando isto não ocorre, o que predomina é a manifestação mais constante e sutil da arrogância e vaidade, repercutindo a reflexão do Rubens Alves, evidenciando-se a nossa incapacidade de escutar.
Alves, a partir do relato de um amigo, reforça sua posição quanto a importância da escutatória. Conta que em roda de conversa entre índios na América do Norte, os participantes estão reunidos em roda, mas ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. Então, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a manifestação singular, novo silêncio. Escutatória ocorrendo. Lembrem-se, é preciso tempo para entender o que o outro falou. O longo silêncio quer dizer: estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. Assim, o desenvolvimento da reunião ocorre no ritmo do alcance do foco, do objeto em pauta. Não basta o silêncio de fora, é fundamental o silêncio de dentro. É necessária a ausência de pensamentos pré-concebidos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não escutava, passa a aprender muito mais e a colher as evidências mais significativas do que está sendo dito, com o que é dito e o que não é.
Meu desejo, como educadora e aprendiz, curiosa e inquieta, é que cada um realmente se prepare para participar do processo de escutatória. Que o enriquecimento do saber dê maior sustentação ao ser de cada um. Entendo e acredito que é cada vez mais necessária a realização de encontros presenciais de construção colaborativa, inclusiva, de propostas alternativas de melhoria de nossa Cidade, mas esses só terão êxito quando acolhermos o outro com o corpo, não apenas com os ouvidos.
*Rita Maria Silvia Carnevale é Diretora de Projetos Sociais e Educacionais do ITD, articuladora do POA Inquieta
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