Cedo da manhã, ele entrou no quarto maravilhado. Tinha acompanhado uma cena que o tocou profundamente. Pela primeira vez, meu companheiro de vida viu um beija-flor tesoura frequentar nosso jardim. Segundo suas anotações, é a 51ª espécie avistada do nosso terraço. O bichinho já tinha sido identificado anos atrás no pátio de uma casa de praia de amigos. Mas por aqui, no meio desse emaranhado de prédios com árvores teimosas, não tínhamos visto ele ainda.
O beija-flor tesoura se deleitou com as flores de alecrim. Foi numa, foi em duas, transitou para lá e pra cá. Depois foi ver de perto os outros passarinhos que se banhavam no prato de cerâmica cheio d’água. Eles amam uma poça para se refestelar. Mesmo no frio, na quarta estava uns 10 graus, aproveitam o momento em contato com o líquido para brincar, levantar as penas, jogar conversa (pios) fora.
Depois de passar os olhos naquele atrativo que reunia sanhaços cinzentos e cambacicas, o beija-flor acompanhou a movimentação de outras espécies. O sanhaço-papa-laranja e o sabiá-laranjeira estavam entretidos comendo a banana que colocamos todos os dias de manhã no bougainville e na bergamoteira. Testou outros poleiros no limoeiro antes de mudar de rumo.
Não demorou muito, adentrou na parte coberta pelo telhado verde. Se aquietou em um fio do abajur de cipó, como que reconhecendo o terreno. Jamais imaginava encontrar naquela região próxima do centro um lugar com diversidade de árvores e folhagens de cores variadas.
Antes de partir para outro lugar nas alturas – o cenário se encontra no oitavo andar – pousou em um dos galhos da parreira, meio que não acreditando que tinha descoberto aquele recanto tão inusitado.
Novas flores estão por abrir. Logo poderá voltar para desfrutar da sombra do limoeiro, da laranjeira, da pitangueira e de tantos vasos repletos de suculentas. Como pode haver um lugar assim numa cidade onde o asfalto e o ladrilho imperam, dão as regras em nome da agilidade e da rapidez?
Se existe um recanto com verdes de diferentes texturas e formatos, é porque alguém se importa com outras formas de vida. Arrisco a afirmar que cultivar um jardim é uma forma de ativismo. Um jeito de agir em favor de uma causa maior. Afinal, regar, cuidar, estar sempre atenta às necessidades de cada tipo de verde requer ação diária, ainda mais em uma cidade de altas temperaturas e fortes ventos.
No sábado, dia 7 de junho, o programa Cidades e Soluções, da Globo News, foi sobre ativismo. Mostrou quatro ativistas: um cara que retira resíduos do mar, outro que mantém uma barreira que junta resíduos no meio da mata, outro que plantou uma floresta em plena capital paulista e uma indígena que atua pelo reconhecimento do seu território. Cada um age de diferentes formas para deixar o mundo um pouco melhor. O programa me fez pensar o quanto precisamos de mais ativismo. E fora das telas. Mesmo que seja para criar pequenos espaços para que abelhas, pássaros e borboletas venham nos visitar.
Em tempos de tantas situações surreais, proporcionar locais onde a vida brota pode ser um jeito de revolucionar as relações. E pode ser algo transformador. Não só para quem proporciona, mas para quem desfruta. Permitir que nasçam flores, plantas que convivem numa boa ou disputam um lugar ao sol, requer alguma atenção. Cultivar a natureza é um caminho para se conectar com o fio da vida. Com o que nos faz acordar de manhã e seguir respirando o resto do dia. Até o apagar da velha chama, como já cantou João Gilberto.
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Foto da Capa: UFRGS / Fauna Digital