Há controvérsias sobre a crônica. Diz-se que é uma narrativa de eventos ordenados no tempo, com alguma relevância, e que suscitem algum interesse jornalístico, histórico ou literário. Gabriel García Márquez a definia como “uma história que é verdade”. Já Fernando Sabino, pragmático, escreveu, tentando encerrar a questão: “Crônica é tudo o que o autor chama de crônica”. Rubem Braga, outro artífice no métier, respondeu a um jornalista: “Se não é aguda, é crônica”.
A origem da palavra sabe ao grego chronica, que vem de krónos (tempo): uma ordenação de fatos na linha de tempo.
Músico, compositor, Fernando Corona também escrevia crônicas geniais. Um humor especialíssimo, irônico, lúdico, burlesco, inteligente. Um desafio, para o mais exigente leitor, não se envolver. Comparável à descrição que fez de tentativa de chupar manga madura sem se lambuzar. Nas apropriadas palavras de Hique Gomez, entre alguns arroubos ranzinzas, atribuíveis talvez ao lado ibérico de sua herança, Corona distinguia o viés cômico da vida, a graça de ver e fazer graça.
Fernando Villeroy Corona soube ser digno das influências genealógicas, bem sonantes até nos nomes de família. A cerimônia de despedida, seu último ato artístico, aconteceu no Teatro São Pedro no dia 15 de março. Mas o mais significativo deu-se alguns dias antes: postou um vídeo brincando, feliz com os netos que fora visitar. Estava em Luxemburgo, na véspera do dia que o seu coração, pleno e amoroso, como bem reconhece a família e uma legião de amigos, surpreendeu com um acorde final. Após um autêntico allegro, sem aviso, sem uma coda, aquele símbolo usado em partituras para indicar onde começa a passagem final de uma peça.
Qual orquestra sem regente, a mãe Magali; os filhos Laura, Fernando e Júlia; os netos; a irmã Marilice; a família; os amigos. Atônitos pelo silêncio abrupto precisarão se valer de boas lembranças para seguir tocando. Corona vinha entusiasmado com o sucesso do espetáculo As cobras com algo na cabeça – no mundo do Verissimo, em parceria com Cláudio Levitan e Fernando Pezão. Um show com canções feitas a partir do livro Poesia numa hora dessas?!, do escritor Luis Fernando Verissimo. Caberia perguntar – a morte numa hora dessas?! Numa das tiradas atribuídas ao Mestre, ele já ensinava: viva todos os dias como se fosse o último, um dia você acerta.
Reunir as histórias que Corona fez circular em suas redes sociais, promovendo estético deleite e alentadores risos nesses últimos tempos, se impõe. Um contraponto à pandemia e às sombras. Do vírus, a quem negava qualquer parentesco, a outros personagens infames, grotescos, ridículos, ainda que trágicos. Suas “CorÔnicas” exigem uma publicação em formato de livro.
Um detalhe nas exéquias não lhe passaria despercebido e adivinhei o característico olhar de galhofa no semblante do homenageado. No ataúde elegante, uma pequena plaqueta de identificação. Discreta, simples como ele sempre soube ser a despeito da genialidade. Emprestava um toque de inegável dignidade: Monsieur Fernando Corona. 14/07/1958 – 01/03/2024.
– Monsieur! – Em letras douradas, não é pouca coisa. Dá outra dimensão à prosaica etiqueta. Do tamanho de um trivial curativo, equivale a uma “Canção Band-Aid”, acalma e protege a alma.