O autismo pode ser “revertido”. Essa era a promessa estampada na manchete do jornal britânico The Telegraph recentemente, destacando um artigo publicado nos EUA. A comunidade científica desqualificou o trabalho, ativistas da causa autista o consideraram insultante, mas, mesmo assim, a manchete sensacionalista ganhou o mundo, gerando muitas visitas à página do jornal e, também, muita desinformação.
O artigo publicado no Journal of Personalized Medicine, uma revista pouco conhecida e sem impacto científico, afirma ter “revertido” o autismo em duas gêmeas não idênticas. O estudo garante que, após o tratamento, os sintomas das meninas, que anteriormente precisavam de muito apoio para realizar tarefas diárias, desapareceram ou diminuíram.
As gêmeas, cujo autismo foi diagnosticado aos 20 meses, passaram por uma série de mudanças ambientais e alimentares durante dois anos. Essas alterações, que incluíram a adoção de um estilo de vida mais natural, com muitas restrições, e a dedicação a um número enorme de horas de diferentes terapias, teriam, segundo os autores do artigo, resultado em uma “espécie de milagre.”
Os autores reconhecem que o tratamento proposto, “embora eficaz”, possui algumas limitações. A principal delas é o custo elevado, incluindo as despesas com as mudanças de estilo de vida, os cuidados de vários profissionais, as diversas avaliações laboratoriais realizadas, além dos medicamentos e suplementos administrados às meninas.
Outra limitação desse tratamento é a falta de evidências dos efeitos de cada uma das modalidades que foram empregadas. Há um apelo que as medidas tomadas em conjunto levaram à “cura” do autismo em razão do tratamento ser holístico, integrativo, personalizado às necessidades biológicas de cada uma das pacientes, nas palavras dos autores.
Contudo, como eles mesmo alertam, “estudos prospectivos futuros são necessários para confirmar essas descobertas.”
As conclusões apresentadas no artigo foram refutadas pela comunidade científica, pois o texto utiliza uma linguagem típica do negacionismo científico e recicla ideias já refutadas em pesquisas.
Desde o início, o artigo questiona a ideia amplamente aceita entre especialistas de que o autismo tem origem genética. O artigo adota uma explicação que fatores ambientais e de estilo de vida, como a exposição a campos eletromagnéticos gerados por telefones celulares, entre outros, são mais importantes na origem do autismo.
O artigo menciona outra suposta “causa do autismo”: o acúmulo de metais pesados no corpo, especialmente mercúrio. Movimentos antivacinas têm usado essa ideia para espalhar desinformação, alegando que as vacinas são perigosas por esse motivo, como no boato de que o local da injeção da vacina contra a COVID-19 ficaria magnetizado como um ímã. Porém, a hipótese que o autismo seria causado por intoxicação por metais foi refutada por diversos estudos clínicos e epidemiológicos.
Cientistas que analisaram o estudo o consideram falho e irresponsável, pois ele se baseia apenas nos depoimentos e registros dos pais e na aplicação de terapias sem respaldo científico. Como explica a Dra. Rosa Hoekstra, especialista em neurodesenvolvimento do King’s College London:
O autismo é uma constelação de características de personalidade, gostos e desgostos, coisas em que você pode ser bom, coisas que você pode achar difíceis.
Intervenções específicas podem realmente ajudar crianças ou adultos a se desenvolver. Mas isso não significa mudar sua personalidade ou sua essência.
A linguagem de “reversão” é um conceito ultrapassado e inapropriado em 2024.
A luta pela atenção dos leitores e as conclusões chamativas dos autores deram repercussão na mídia ao estudo de caso “Reversal of Autism Symptoms among Dizygotic Twins through a Personalized Lifestyle and Environmental Modification Approach: A Case Report and Review of the Literature”
O autismo tem sido um campo fértil para a disseminação de teorias conspiratórias e de aplicação de tratamentos de eficácia duvidosa com custos que ultrapassam a casa dos milhares de reais. É lamentável que tudo isso seja amplificado pela mídia e pelas redes sociais no que constitui em mais um exemplo dos danos causados pela desinformação.
Foto da Capa: Montagem
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