Pessoas neurodivergentes, como autistas, estão acostumadas a ser julgadas por conta de suas reações, muitas vezes consideradas inadequadas por pessoas neurotípicas. São comuns relatos de um riso fora de hora ou uma suposta frieza em situações de luto que causam estranheza, podendo levar a conclusões equivocadas, como de que não está sofrendo com a morte de um ente querido ou mesmo a juízos de valor, concluindo-se que a/o autista é uma pessoa sem sentimentos ou mesmo má.
Dois casos judiciais de grande repercussão nos Estados Unidos estão colocando essas questões em debate nos tribunais: Robert Roberson e Sam Bankman-Fried foram prejudicados ou condenados por serem autistas? Essa pergunta está sendo levantada por advogados e ativistas que buscam reverter as penas impostas a eles.
Robert Roberson, 57 anos, está há 21 anos no corredor da morte no Texas, condenado pela morte de sua filha de 2 anos, Nikki, em 2002, em decorrência de maus tratos atribuídos a ele. Sua execução está marcada para o próximo dia 17 de outubro.
Os defensores de Roberson apontam três erros cruciais em seu julgamento: o diagnóstico incorreto da síndrome do bebê sacudido, a falha em investigar outras causas da morte de Nikki e a má interpretação do comportamento do pai devido ao seu autismo.
A “síndrome do bebê sacudido” foi dada como explicação para a morte de Nikki, que faleceu após chegar ao hospital, nos braços do pai, em estado de coma e com o rosto azulado por asfixia. Os médicos atribuíram os sintomas de Nikki à síndrome do bebê sacudido, uma lesão cerebral grave resultante de sacudidas violentas no corpo da pequena criança com tanta força que o fornecimento de oxigênio ao cérebro fica comprometido. Esse diagnóstico levou à conclusão de que Nikki havia sido vítima de abuso infantil.
A “síndrome do bebê sacudido” perdeu completamente a credibilidade científica e não é mais admitida como evidência em casos criminais. Essa hipótese foi afastada também por exames realizados na menina, que revelaram que uma pneumonia dupla foi a provável causa da morte. Nikki faleceu em decorrência de uma condição médica complexa que, mesmo os médicos que a trataram, não conseguiram observar e tratar em tempo hábil.
Um fator fundamental na investigação e na posterior condenação de Robert à pena capital foi a sua reação, que médicos e policiais viram como de frieza e distanciamento à agonia e morte de sua filha. Robert não apresentou o comportamento típico de um pai enlutado, o que levantou suspeitas e confirmou, para o júri, que ele era um assassino. Após 15 anos na prisão, ele foi diagnosticado com autismo, o que explica seu comportamento atípico.
O detetive responsável pela investigação, Brian Wharton, é um dos líderes do movimento que pede clemência. O policial se retratou, reconheceu seu erro e pede clemência, em petição que também é assinada por cientistas, legisladores, advogados e figuras públicas como John Grisham, autor conhecido por seus best-sellers, com tramas de suspense que se passam em tribunais.
O caso vem sendo acompanhado pela Rede de Autoadvocacia Autista (ASAN), principal entidade representativa de autistas nos EUA. Em seu manifesto, a associação condena veementemente a execução planejada de Robert Roberson, afirmando que sua condenação baseou-se em evidências científicas desatualizadas e em uma interpretação errônea de seu comportamento após a morte de sua filha, Nikki.
A ASAN argumenta que a falta de demonstração de emoção por Roberson, consistente com o espectro autista, foi mal interpretada como suspeita, levando a uma acusação de homicídio culposo baseada na então aceita, mas agora desacreditada, “síndrome do bebê sacudido”. Especialistas médicos revisaram o caso e concluíram que Nikki morreu de pneumonia não diagnosticada, e não de trauma craniano.
A entidade aponta que a condenação de Robert Roberson evidencia a falha do sistema jurídico em considerar as diferenças comportamentais de pessoas autistas. Sua forma de lidar com o luto foi mal interpretada e considerada como prova de culpa, revelando o preconceito arraigado contra indivíduos com deficiência. A falta de uma demonstração de luto “típica” foi usada como evidência de crime, mostrando como estereótipos podem levar a condenações injustas de pessoas vulneráveis.
O caso de Roberson também expõe desigualdades sistêmicas que afetam pessoas com deficiência, especialmente aquelas em situação de pobreza. A ASAN argumenta que, em tragédias, a sociedade frequentemente busca bodes expiatórios, transformando pessoas com deficiência em “culpados convenientes” devido ao capacitismo. O autismo de Robert Roberson foi utilizado para justificar uma condenação injusta, resultando em consequências devastadoras em uma situação onde não havia crime.
A forma como o comportamento atípico de um autista foi tratado pelo júri também é objeto de contestação pelos advogados de Sam Bankman-Fried, chamado de SBF pela imprensa americana, condenado a 25 anos de prisão por crimes ocorridos em sua ascensão e queda meteóricas no mundo das criptomoedas, em uma trama que envolve bilhões de dólares e que tem seu capítulo mais recente na sua prisão junto com o rapper P. Diddy, outro caso de grande apelo midiático.
SBF era o fundador da FTX, uma espécie de corretora, que logo se tornou uma das maiores exchanges de criptomoedas do mundo, a ponto de ele aparecer na lista Forbes 30 Under 30, que, segundo a revista, “destaca os mais brilhantes empreendedores, criadores e game-changers de até 30 anos, que revolucionam os negócios e transformam o mundo”.
Seu mundo veio abaixo quando a FTX colapsou, após uma corrida de seus clientes para salvar seu dinheiro, sem sucesso. Investigações posteriores revelaram diversas irregularidades que culminaram com sua prisão nas Bahamas e sua subsequente extradição para os EUA para responder às acusações de fraude e lavagem de dinheiro. Ele foi considerado culpado em todas as acusações e sentenciado a 25 anos de prisão.
A defesa de Sam Bankman-Fried já vinha alertando que seu cliente não conseguia se preparar adequadamente para o julgamento, entre outros motivos, pela falta de acesso a medicamentos para seu TDAH, prejudicando o foco e atenção necessários para essa tarefa.
Após a condenação, um relatório médico apresentado em apoio à apelação de SBF argumenta que sua neurodivergência, especificamente seu diagnóstico de autismo e TDAH, influenciou significativamente seu comportamento durante o julgamento. Os médicos afirmam que suas respostas extensas, interpretadas como evasivas pelo tribunal, são comuns em autistas que processam a linguagem de forma literal.
As repreensões judiciais, segundo o relatório, levaram SBF a modificar suas respostas, tornando-as excessivamente breves, o que pode ter sido mal interpretado como arrogância ou indiferença. Falando muito ou pouco, a diferença de comportamento social de uma pessoa neurodiversa é vista de forma negativa.
Tais circunstâncias foram agravadas pela falta de acesso à documentação referente ao caso e pela ausência de medicação adequada para o TDAH, que também é apontada como um fator prejudicial.
O relatório médico detalha como a restrição de acesso à documentação dificultou a capacidade de SBF de responder questionamentos com precisão, gerando respostas que poderiam parecer pouco cooperativas. A falta de medicação adequada para o TDAH durante as primeiras semanas do julgamento, segundo os médicos, afetou seriamente sua capacidade de concentração, comprometendo sua defesa. O relatório médico sugere que a neurodivergência de SBF e a falta de apoio adequado durante o julgamento prejudicaram o seu direito à defesa e a um julgamento justo, podendo levar à nulidade processual.
As alegações de defensores de Robert Roberson e Sam Bankman-Fried colocam uma questão que há muito é levantada por pessoas neurodivergentes, como autistas e pessoas com TDAH, a culpabilização por ser diferente, as condenações e rótulos a que são submetidos no cotidiano, no trabalho ou na escola, em razão de comportamentos inofensivos, mas que destoam da maioria das demais pessoas.
Quando essas questões chegam aos tribunais, podem levar a tragédias como a possível execução de um homem inocente por um crime que não cometeu. De todo coração, espero que Roberson tenha a clemência que merece e que receba alguma reparação pela injustiça que sofreu. E que, se SBF cometeu crimes, que pague por eles, mas que não seja condenado pelo crime de ser neurodivergente.
Foto da Capa: Robert Roberson / Innocence Project.
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