A forma como cada pessoa e cada família está vivendo o desastre climático no Rio Grande do Sul depende de muitos fatores. Desde aqueles mais prosaicos, como ter (ou não ter) luz e Internet, como se teve ou não água nas primeiras semanas de inundações. Ser uma pessoa com deficiência também interfere nesse quadro, dada sua maior vulnerabilidade em eventos climáticos extremos, como falamos na coluna “Pessoas com deficiência em desastres climáticos”, publicada aqui na SLER.
Autistas sentem e vivem a realidade de maneiras distintas das demais pessoas, em especial daquelas que chamamos de “neurotípicos”. Inseridos que estão na sociedade, sofrem diferente de acordo com questões de gênero, classe e raça. Mulheres estão mais sujeitas à violência em situações de calamidade, mães de crianças com deficiência passam mais pelo abandono de seus companheiros. A pobreza trará mais ou menos recursos (financeiros, culturais, sociais) para enfrentar o caos que vivemos e, em um País onde pobreza tem cor, o fator raça está presente em todas as situações.
Isso vale também para as atuais inundações, como eu tenho vivido em casa e observado, durante minhas atividades diárias o modo de ser, o autista acaba sendo impactado de muitas maneiras, devendo ser destacada a quebra da rotina.
Em casa, temos sentido muito isso. A ausência da rotina diária de aulas na faculdade pela manhã e trabalho pela tarde acaba desorganizando o dia do meu filho Amir, que é autista, gerando angústia e ansiedade, o que é aumentado pela incerteza de quando essa situação temporária irá acabar.
Tudo isso potencializado pela incerteza das duas últimas semanas, perguntando-se todos os dias, se teríamos água para tomar banho ou água para beber, eleva exponencialmente a ansiedade. Não é um capricho ou um incômodo, é sofrimento.
A dra. Raquel del Monde, médica e mãe de um filho autista, ao explicar as características do autismo, aponta que “as pessoas no espectro do autismo exibem padrões mais restritos e repetitivos de pensamentos, interesses e comportamentos”, o que pode se manifestar com o “apego à rotina, necessidade de manter hábitos rígidos (…) e dificuldade em adaptar-se a mudanças.
No texto “Autismo: Mudar a rotina quebrou tudo na minha vida”, a jornalista autista Renata Simões, que assina a coluna “Dentro do Espectro” no jornal “O Estado de São Paulo”, relata a “agonia” e o “pânico” que passou ao tentar manter suas atividades cotidianas quando seu computador foi para o conserto: “Quebrar a rotina quebrou tudo na minha vida.”
Como ela escreve:
“O apego à rotina é categorizado como obsessivo-compulsivo pela insistência no padrão, e também pode ser uma força poderosa no auxílio para lidar com a incerteza do cotidiano, trazendo calma e conforto à mente inquieta. Qualquer mudança toca um alarme – como no caso do computador quebrado.”
Se a rotina é a forma para lidar com as incertezas do cotidiano, o que se dirá quando o cotidiano é alterado de tal forma como em um desastre como estamos vivendo no Rio Grande do Sul, onde contamos mortos, desaparecidos e desabrigados todos os dias?
A rotina de quem ficou sem água é diferente de quem passou duas semanas improvisando banhos. Aquela de quem tem luz é muito diferente de quem passa os dias sem luz, sem poder conservar alimentos em geladeira, morando em um andar alto e sem ter elevador. Tudo isso tem um impacto, maior ou menor no dia a dia.
Se quem pegou um carro e foi para sua casa de praia já teve sua vida alterada, o que se dirá de quem não tem para onde ir? E, principalmente, quem não tem para onde voltar? Quem teve sua casa invadida e destruída pelas águas barrentas que arrastavam tudo por onde passavam?
Debora Saueressig, junto com Roberta Vargas, criou o Instituto Colo de Mãe, responsável por um abrigo para famílias com crianças com deficiência em Porto Alegre, conta das dificuldades que as crianças autistas em abrigos convencionais:
“Elas têm dificuldade, é fato, é isso que dizem os relatos que estamos recebendo. Há excesso de sons, barulhos e estímulos, tem muita música e televisão. Uma pessoa dorme enquanto outra levanta, uma caminha, outra se bate, alguém abre uma janela. É muito comum que uma criança autista entre em crise diante de uma sobrecarga sensorial.”
Conforme ouvi mais de uma vez em visitas a abrigos destinados a crianças autistas, essas crises muitas vezes resultam em ameaças, veladas ou abertas, que levam as famílias a procurar amparo em casas de familiares ou em abrigos mais preparados para recebê-los.
A procura maior que a oferta de vagas para pessoas combinado com o fato que muitos abrigos estão localizados em clubes ou escolas que desejam voltar a suas atividades normais, há uma grande incerteza quanto ao futuro de pessoas que já passaram por muitas perdas. Como conta Ana Paula Kohlmann, mãe de autista e ativista do Instituto Autismo e Vida, ao falar do abrigo em que atua como voluntária, em Canoas: “A falta de previsibilidade está desestabilizando as famílias e por consequência desorganizando as pessoas com autismo.”
É um círculo vicioso em que autistas são desorganizados pela falta de rotina e pela ansiedade de suas famílias. Essa situação leva a crises que desorganizam ainda mais os autistas e geram ainda mais ansiedade para suas famílias. E, como o julgamento chega antes do que o acolhimento, a situação se agrava pelo meio hostil dos abrigos convencionais.
O desastre climático gaúcho tem afetado muita gente, mas nem todos da mesma forma. Saber que pessoas são afetadas de forma diferente e devem receber tratamento de acordo com suas necessidades, é parte desse aprendizado. Em um mundo em que eventos climáticos extremos serão cada vez mais intensos e mais frequentes, isso é uma necessidade.
Foto da Capa: Reprodução Instagram @somoscolodemae
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