Já repararam que sempre que se fala em revisão de Plano Diretor o verdadeiro assunto em pauta é o aumento da altura das edificações? Uma verdadeira obsessão da construção civil nacional, seja em Porto alegre, Torres ou qualquer outra cidade Brasil afora. Liberdade para chegar ao céu! Os que ficarem à sombra dos edifícios ou contemplando a paisagem de um paliteiro sem graça que “corram atrás”, diria um típico individualista brasileiro.
A discussão quase sempre vem embrulhada em preocupações sociais, econômicas e até ambientais! Mas o que sempre está em jogo é o quanto a terra vai ser valorizada. Vocês sabem, um terreno urbano não vale pelo que se planta nele, vale pelos metros quadrados que se pode construir ali. Aumentando a área construída, aumenta o valor dos terrenos: “todos ganham”, na visão individual simplista. Só que a cidade é mais do que a soma de indivíduos satisfeitos com seus negócios. A cidade é obra coletiva, que se não for bem-feita perde valor social, afetivo e econômico. As pessoas não querem morar em bairros desagradáveis, sombreados, sem animação, onde não encontram a sensação de segurança que o comércio e gente na rua trazem. O objetivo da cidade, no meu entender, não é negócio, é qualidade de vida.
O prefeito Sebastião Melo veio com essa máxima: “As revisões do Plano Diretor anteriores se basearam muito em alturas. Eu sinceramente acho que isso é reduzir a discussão do Plano Diretor. Não podemos resumir o debate do Plano Diretor às alturas. Esse debate tem que ser muito mais do que alturas. Tem que ser econômico, social, urbanístico”. Para em seguida emendar: “Eu defendo a liberação de alturas em vez de estender a cidade lá para a ponta.” (Correio do Povo) Entenderam? Vamos parar com esse assunto, tá chato, libera e pronto. Chega a ser pueril ou malicioso quando introduz a fake news de uma oposição extensão x verticalização. Não existe essa relação de causa e efeito. Que o prefeito cite um caso onde a verticalização tenha limitado a extensão de uma cidade.
Feito o desabafo, vamos, realmente, deixar esse assunto para trás e falar de outras e necessárias revisões? Tem muita coisa para ser revisada, mas hoje eu queria lembrar da concepção rodoviária do Plano Diretor de 1959, que segue em implantação. Nesse plano, a abertura de novas avenidas e alargamento de ruas foram traçados sobre a cidade existente para que os automóveis fossem priorizados. O desenho sobreposto ao mapa de 1959 previa demolições de bairros e quarteirões inteiros e segue vigente. As famosas “obras da copa de 2014” – abertura de avenidas e viadutos – fazem parte desse projeto. Esse Plano Diretor, incrivelmente agressivo, planejou ações para transformar Porto alegre o mais próxima possível de uma Brasília. A quantidade de viadutos, trevos, alargamentos de ruas e novas avenidas projetadas é impressionante.
Esse fenômeno não aconteceu só aqui. Em São Paulo, o Plano Urbanístico Básico, de 1968, rasgou a cidade com vias expressas para transformá-la em uma Los Angeles. Em Salvador, o mesmo espírito com as avenidas de fundo de vale; no Rio de janeiro, a profusão de cores das linhas expressas: amarela, vermelha, verde, azul entre outras. A diferença é que aqui, em Porto Alegre, as coisas foram mais lentas devido ao “atraso” do nosso capitalismo em relação ao centro do país durante o “milagre econômico” da ditadura e, por sorte, havia um espírito conservador e uma combativa classe intelectual que travou a transfiguração total da cidade.
Rapidamente, pode-se dizer que o plano de 1959 desenhou um importante sistema de avenidas interligando bairros sem passar pelo Centro Histórico, cruzando as antigas avenidas ampliadas e que partem do mesmo centro. E não parou por aí, dezenas de ruas foram programadas para serem alargadas para darem vazão ao fluxo crescente dos automóveis. Esta é a razão de porque algumas ruas têm, como a Anita Garibaldi, Lucas de Oliveira, Barão do Amazonas e tantas outras, enormes calçadas que não foram projetadas para os pedestres. Na verdade, esses espaços eram – e espero que não sejam mais –, uma reserva para aumento das pistas de rolamento para os automóveis, derrubando árvores e estreitando as calçadas. Na visão desse plano, as ruas não eram ruas, eram vias de rodagem ligando estacionamentos a estacionamentos. Daí a obrigação de ter garagem em todas – repito: todas! – novas construções que foram feitas a partir de 1959.
Por sorte, a radicalidade desse desenho foi sendo barrada aqui e ali, sofrendo adaptações provisórias e sensatas. A segunda Perimetral, por exemplo, que corta o Parcão, passaria por baixo da 24 de Outubro e seguiria alargando sobremaneira a Félix da Cunha até a Farrapos. Aquela calçada, com lojas e cafés, que é tão agradável de caminhar na frente do Shopping Moinhos de Vento seria riscada do mapa… Por persistência e resistência de moradores preocupados com a história, elas seguem lá. A divisão do fluxo de automóveis em ruas paralelas (no caso, o binário Félix da Cunha/Dr. Timóteo) as salvaram, e tudo indica que a provisoriedade do sistema será esquecida. Isso mostra que sempre se pode encontrar uma solução quando se aceita a diversidade do problema. Mas a previsão de alargamento da rua Félix da Cunha, e de tantas outras, segue prevista no Plano Diretor.
O Plano Diretor de 1959 começou a transformar Porto Alegre em um verdadeiro autorama: pessoas se locomovendo dentro de seus automóveis, subindo freneticamente em viadutos, experimentando a força centrífuga das alças dos trevos. Divertido! E os pedestres? Pedestres não existiam… e seguem não existindo.
A pergunta que quero deixar aqui é: não é hora da revisão? Vamos pensar no desenho para a cidade do pedestre, do caminhante, do usuário do transporte coletivo e compartilhado? Vamos pensar no que fazer com tantas áreas que estão reservadas para alargamentos viários e não precisam necessariamente ser utilizadas para os automóveis?
Nas zonas onde o plano rodoviário chegou a ser implantado, a realidade foi mais perversa e o sistema logo engarrafou. Alguns porto-alegrenses se indignavam: “É falta de mais viadutos!”. Só que as cidades que tiveram dinheiro para fazer todos os viadutos pretensamente necessários, como Los Angeles, também paravam na hora do rush. Já ao final do século XX, o mundo constatou que a cidade dos automóveis não funcionava. Portland, nos Estados Unidos, foi uma das primeiras a investir pesado em uma virada radical de direção, mudando sua história. Os automóveis perderam sua primazia, foram substituídos por um sistema de bondes. Viadutos foram derrubados.
O urbanista Carlos Moreno, colombiano radicado na França, foi mais longe, inventando a Cidade de 15 Minutos. A ideia, que era considerada utópica por muitos, ajudou a reeleger Anne Hidalgo prefeita de Paris e vem sendo implantada. Quinze minutos é o tempo que o cidadão deve se deslocar a pé ou de bicicleta para encontrar trabalho, comércio, lazer, saúde ou o que for necessário para sua vida diária. Nada de automóveis nas ruas! Agora elas servem para as crianças brincarem, os pedestres caminharem em segurança, lugar para as mesas dos restaurantes e cafés, e por aí vai.
São Paulo acaba de anunciar que vai alargar as calçadas da Av. Santo Amaro (equivalente a nossa Protásio Alves ou outra radial), enterrar a fiação e aumentar a segurança dos pedestres. Reformas ainda tímidas, mas que apontam na direção do futuro. E nós? Vamos parar de fustigar o aumento da altura dos edifícios e planejar o que realmente importa? O pedestre, para que não haja dúvidas.
Em tempo. Que descabimento morfológico é esse de aprovar prédios quatro vezes acima do skyline de Porto Alegre no tradicional quarto-distrito, todo ele formado por edificações baixas? Edifícios de 300m de altura em um bairro com valores históricos a serem protegidos? É essa ideia de “vamos parar de falar em alturas”?
Texto publicado originalmente aqui no Sler, em 26 de agosto de 2022, mas que permanece atual.