Dia desses, numa visita de fim de semana à minha querida livraria Taverna, na Casa de Cultura Mario Quintana, eu testemunhei a cena que se segue – e que vocês estão liberados para achar que é fanfic, mas ocorreu de verdade.
Enquanto eu coçava a cabeça na estante da literatura nacional tentando entender os rumos para onde avançam as letras do Brasil, uma menina de uns 10 anos cruzou a livraria – indo do lado da porta em direção ao fundo da livraria, ali onde eles mantêm os livros da coleção de bolso de capa dura da Zahar. A menina sacudia na mão um livro infantil de capa meio azul, meio verde, que infelizmente a minha miopia sem óculos naquele momento me impediu de identificar (preciso de óculos para enxergar o letreiro do ônibus à distância, mas tenho de retirá-los para poder ler a lombada dos livros a meio palmo). O que importa não é bem o nome do autor do livro, mas o encantamento algo surpreso com que a menina anunciou para sua mãe no outro lado da livraria:
“Mãe, esse autor desse livro teve no meu colégio esse ano”.
A mãe fez algumas perguntas sobre o episódio que eu não ouvi porque preferi me afastar e não ficar escutando conversa alheia, mas o foco para mim era aquela qualidade entre surpresa, alegria, espanto com que a menina foi anunciar à sua mãe que havia conhecido o autor do livro que estava exibido na livraria (mais perto da entrada, junto à vitrina, a janela que dá para a Andradas).
Iniciativas
Esse é e sempre foi o foco de grandes iniciativas que este Estado levou a cabo para cumprir essa tarefa algo misteriosa e cabalística que todos chamam de “incentivar a leitura” e que todos julgam muito necessário até começarmos a entrar nos pontos práticos da missão.
Uma das iniciativas pioneiras a intuir o quanto esse contato entre alunos na escola e a figura do autor, uma figura que se materializa em carne e osso e não apenas como aquele nome impessoal na capa do livro, foi criada em 1972 pela gestão da então diretora do Instituto Estadual do Livro, Lygia Averbuck, e está ativa até hoje, apesar dos percalços das marés da política: o Autor Presente. Uma ideia que já nasceu tão boa que pouco se modificou desde sua criação, apenas com ajustes pontuais. Originalmente chamado Encontros com Escritores, o projeto consiste em distribuir os livros para as escolas do Estado de uma lista de autores dispostos a viajar para divulgar suas obras. Muitas vezes, publicadas por editoras locais. O Instituto comprava os livros e pagava um modesto cachê. Cabia a cada escola escolher um autor e trabalhar o livro ao longo do ano letivo e fazer com que os alunos o leiam. No final do processo, os escritores vão até as escolas para debater seu trabalho com seus leitores – não sei por que não perguntei, mas é possível, por exemplo, que a menina na livraria Taverna tenha tido contato com um autor mediante o projeto. Ou não, dado que o modelo meio que foi copiado com sucesso aqui e ali em iniciativas pontuais.
Em escala macro, era um pouco essa também a fórmula da Jornada Nacional de Literatura, realizada a cada dois anos em Passo Fundo. A UPF anunciava os autores convidados, seus livros eram trabalhados nas redes escolares da região e a jornada era o ponto culminante desse processo, no qual estudantes e o corpo docente compareciam à lona do Circo da Cultura, no campus da universidade, para falar ao público que o havia lido. Foi um modelo que durou por três décadas e meia, e deu tão certo que a região de Passo Fundo registrou consistentemente na pesquisa da Câmara Brasileira do Livro (CBL) Retratos da Leitura no Brasil um índice médio de leitura maior do que o país inteiro.
Ao contrário do Autor Presente, que sem Lygia Averbuck seguiu adiante, ainda que com altos e baixos, aparentemente a saída da professora Tânia Roesing do comando da Jornada feriu gravemente o evento, que não é realizado desde 2017 – em 2019, chegou a ser adiado duas vezes em um intervalo de seis meses. Ficou para 2020, mas aí teve a Covid. A Covid veio e foi e não houve mais notícias de retomada no horizonte. Pena.
Fácil e simples
Voltando ao centro da questão: a presença de autores nas escolas é uma iniciativa fácil e que não exige grandes pirotecnias para fazer duas coisas importantes: levar ao leitor o autor, colocando-o em contato com a curiosidade de seus leitores, em um diálogo que pode ser frutífero e quase mágico quando se pensa a longo prazo. Ao mesmo tempo, aproximar o leitor do autor para além do nome na página. Claro, não é uma iniciativa para todo mundo. Conheço escritores em número suficiente para saber que alguns deles não gostam de dialogar com leitores e não gostam de serem os propagandistas do próprio livro, preferindo apenas escrever e que outros cuidem disso. Não tenho nada contra e entendo que cada pessoa tem um perfil, mas esse é o tipo de visão de mundo que um dia vai restringir a atividade de escritor para YouTubers e herdeiros se for adotado.
Sobre isso, aliás, me lembrei agora de uma anedota que me foi contada por Moacyr Scliar durante uma entrevista em comemoração aos seus 70 anos que saiu no então Caderno Cultura, de Zero Hora. Scliar adorava a experiência de falar a estudantes. Sem nenhum paternalismo, dizia que algumas das questões mais interessantes que haviam sido apresentadas a ele em sua incansável carreira haviam sido feitas nesses encontros. Contou que certa vez, em uma das visitas do Autor Presente, um dos alunos fez um comentário que mudou a própria concepção de Scliar sobre um dos seus contos, Cego e Amigo Gedeão à Beira da Estrada.
Pérola do humor característico de Scliar, esse conto é estruturado em um longo diálogo entre o protagonista cego do título e seu amigo Gedeão. Sentado à beira da estrada, o cego conta ao amigo que, com a cegueira, sua audição se tornou tão desenvolvida que ele é capaz de reconhecer qualquer carro pelo ronco do motor. E como essa habilidade foi certa vez útil até para ajudar a polícia a resolver um crime. A reviravolta da história é que, a intervalos, o Cego pergunta ao amigo Gedeão se o carro que acabou de passar por eles na estrada é de um determinado modelo. E nunca é, o Cego erra todas as respostas e claramente nunca acerta uma, desacreditando, portanto, as autopropaladas capacidades que, em tese, o teriam ajudado até mesmo a esclarecer um crime:
— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?
— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.
— Um Simca Tufão?… Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina.
Este que passou agora não foi um Ford?
— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.
Scliar estava conversando com alunos quando um deles então fez a pergunta:
“E quem garante que o amigo do cego não está mentindo para sacanear com ele?”
Desafio triste
Scliar, maravilhado, confessou que nunca havia pensado nessa hipótese ao escrever o conto, mas que sim, ela estava lá, e essa leitura mudava radicalmente a obra, até mesmo diante dele, o autor.
Meu assunto esta semana foi esse, na verdade, porque fico na dúvida por quanto tempo seguiremos promovendo experiências como essa. Eu talvez devesse arrematar torcendo para que esse tipo de modelo, simples e muito fácil de ser realizado, fosse adotado amplamente em escolas particulares pelo Estado afora. Aí eu me lembro…
Eu poderia guardar este texto na gaveta e esperar pelo próximo inevitável exemplo que com certeza virá, mas me contento em lembrar o fuzuê armado em cima do livro do autor Jéferson Tenório por uma diretora de uma escola em Santa Cruz, no ano passado. Luísa Geisler teve seu muito simpático livro infantojuvenil Enfim, Capivaras banido de uma Feira do Livro em Nova Hartz. Para não ficarmos só no Rio Grande do Sul, este ano mesmo O Menino Marrom, de ninguém menos que Ziraldo, um dos titãs da literatura para jovens no Brasil, foi censurado em uma escola no interior de Minas Gerais.
Fico pensando se seria demais esperar que esse modelo se espraiasse para que a cena que eu vi na Taverna se repetisse milhares de vezes. Não sei, fico na dúvida, já que, no momento, a classe média politizada à direita parece estar conformando uma nova organização do mundo na qual você não só não se preocupa em levar autores para a escola.
Você tira também os livros dela.
Foto da Capa: Michał Parzuchowski / Unsplash
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