Bem no compasso, bem junto ao passo,
Do passista da escola de samba
Luiz Melodia
Costumo dizer: “Eu não sambo, eu engano”. Sou uma mulher negra que engana aqueles que nos querem todas iguais, todas sambantes. Ainda assim, é verdade que, precisando, eu tenho cá comigo os meus passinhos. Porém, os anos de balé gastaram um tanto do gingado. Então, por aqui nem sombra de uma Evelyn Bastos.
Orgulho dessa confissão não tenho, mas está tudo bem. Já entendi e aceitei que sou uma apreciadora moderada do carnaval. Não fluo tanto com a energia multidirecional e dispersiva do encontro com a massa carnavalesca. Lido melhor com passeatas e shows. Talvez meu corpo seja excessivamente docilizado, como diria Foucault. Vamos vendo… Em todo o caso, esporadicamente, uma murga aqui, um bloquinho acolá são lindos aconteceres da vida. Contudo, este ano, como em tantos outros, meu Carnaval será caseiro, televisivo e, ademais, em torno do cometa Ainda estou aqui.
É por escolha e circunstância. Outra coisa é o que acontece em Porto Alegre. Ainda me lembro do que minha avó contava do carnaval de rua porto-alegrense e do quanto fiquei feliz, apesar da distância já mencionada, quando a cidade recomeçou o resgate de seu Carnaval popular. Críticas? Sim, entendo que existam. Mas daí a simplesmente expulsar foliões a paulada e gás lacrimogêneo me parece o cúmulo do autoritarismo gratuito. Signo do retrocesso do tempo em que vivemos: de liberais que amam somente a sua própria liberdade. Parece que, mais do que antes, necessitamos de aval para o carnaval…
Uma pena. Espero que a sociedade porto-alegrense saiba reagir. Tenho aprendido que o carnaval é muito mais do que uma grande descompressão pulsional. É uma gigante expressão de nossa cultura, de nossos saberes anticoloniais. Há alguns anos, estive com um grande amigo em um ensaio da Mangueira. Sentir a pulsação de qualquer tambor é uma experiência que puxa uma ligação direta com a minha ancestralidade. Uma alegria que não espera convite, transborda e faz do choro uma resposta automática. Dito de outro modo, o tambor, o ritmo – assim como o pulsar das melhores palavras – operam novos contornos subjetivos, enquanto contam histórias. Lindo de viver!
Um patrimônio cultural chamado Luiz Antonio Simas reverencia há anos os saberes carnavalescos, entre outras epistemologias das ruas. Para Simas, as escolas de samba realizam um papel pedagógico importante e anticolonial.
Foi escutando samba-enredo que eu, ainda menino, soube da Guerra de Canudos, da peleja do caboclo Mitavaí contra o monstro Macobeba, da literatura de Lima Barreto, do drama da seca do Nordeste, da vida fabulosa do pai de santo Hilário de Ojuobá. Foram escolas de samba que me falaram de Teresa de Benguela e do Quilombo do Quariterê, da Confederação dos índios Tamoios, das lendas dos orixás, dos mitos de origem dos carajás e de tanta coisa do tipo[1].
Histórias paridas de ancestralidade e orixalidades que irritam alguns setores conservadores e neopentecostais. Quanta chatice! Mas, enfim: podem querer embargar, coibir, embranquecer, esmaecer… Não adianta: o samba ainda está aqui.
[1] Simas, Luiz Antonio. “Canto na fresta”. In: Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino & Rafaell Haddock-Lobo: Arruaças: Uma filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
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Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais