Uma das relações mais fortes que estabeleci na vida foi com meus avós, em especial, os maternos. Eles que mal sabiam escrever, dominavam a sabedoria da leitura do céu, das nuvens, os mistérios das estações do ano e do plantio da terra, do cuidado com os animais. Aqui poderia ficar desfiando horas de um aprendizado proporcionado naqueles tempos de convivência ao longo da minha infância, adolescência e fase adulta. Até hoje, mesmo que tenha morado na cidade toda a minha vida, me sinto meio do mato e sei que devo isso a eles em grande parte.
Com a vó Lilinha foi uma relação cheia de carinho, risada, cumplicidade. Uma mulher vibrante, inteligente, perspicaz, um imã. Meu vô Balduíno, um inventor de máquinas, geringonças, era daqueles que ia fazendo e explicando as coisas, ensinando. Um homem à moda antiga, sem abraço nem beijo. Os olhos falavam.
Quando eu nasci
Quando nasci, minha avó tinha 44 anos. Meus avós tiveram um casamento de mais de 60 anos. Cinco filhos e 16 netos. Meus pais tiveram quatro filhos e uma única união. Como será meu futuro? Eu não faço ideia de quando serei avó, mesmo que minhas filhas já sejam mais velhas do que minha mãe quando eu nasci. Mas há pistas.
O que é importante salientar é que a condição de se tornar avô ou avó não está conectada ao nosso processo biológico ou cronológico, mas ao nascimento de uma criança no seio familiar, que vai repercutir na vida de avós jovens ou avós idosos – mesmo que exista uma construção social no sentido de que a avosidade é algo que se pratica a partir da velhice.
Desafios da Avosidade – Novos formatos
Nos tempos atuais, as famílias diminuíram por conta da menor natalidade. Estão vivenciando uma “verticalização”, por conta da maior longevidade. Esse é um desafio para a convivência harmônica entre as gerações, especialmente as com avós e pais separados. Hoje, é comum um neto ter oito avós (pois terá o pai, mãe, padrasto e madrasta). Um outro ingrediente nesse contexto é que, por causa de questões do mercado de trabalho, a mulher vem optando em ser mãe mais tarde. Ao mesmo tempo, os avós estão mais ativos, inclusive no mercado de trabalho, e com mais saúde. Esse fator nem sempre permite que os avós apoiem no cuidado de seus netos pequenos, da forma como desejada e/ou necessária.
Desafios da Avosidade – Orçamento
Por outro lado, conforme dados coletados em pesquisa do DIEESE sobre o “Perfil das Pessoas com 60 Anos ou Mais”, vamos descobrir que – no Brasil – 85% das pessoas acima dos 60 moram com outras pessoas, das quais 21% são estudantes (presumivelmente netos), sendo que 75% dos 60+ são responsáveis por pelo menos 50% das despesas familiares. Assim, a gente também vai descobrir a importância desses avós no orçamento familiar.
Avosidade – Guardiões da ancestralidade
Os avós nos transmitem as tradições, a cultura, os ritos e desejos vividos pelos nossos antepassados, passando de geração a geração os sonhos que foram idealizados, realizados e não vividos. Exemplo disso era o grande orgulho de meus avós em ter filhos que tinham feito a faculdade, servidores estaduais e federais, professores. Filhos que haviam saído daquela vida dura do campo cumprindo o sonho do estudo e do trabalho intelectual, mais valorizado. E, quando nos reuníamos em família, realizávamos a tradição dos almoços e churrascos. Até hoje faço a “maionese da vó”, canto o “Biribibi”, música que sempre cantávamos em família, e olho pro céu à procura de nuvens “rabo de galo” pra prever o clima, como o vô me ensinou.
Quando há dor
Mas sabemos que nem todas as relações entre netos e avós são feitas com afeto. Relações com sofrimento e dor com os filhos implicarão em relações dolorosas com os netos e futuras gerações. Não podemos ignorar essa realidade. É ela que acarreta o abandono, a negligência, os números alarmantes dos diversos tipos de violência contra as pessoas idosas. Isso me faz lembrar do conto “O Velho e seu neto” criado pelos Irmãos Grimm, citado em “O livro das virtudes”:
“Era uma vez um velho muito velho, quase cego e surdo, com os joelhos tremendo. Quando se sentava à mesa para comer, mal conseguia segurar a colher. Derramava sopa na toalha e, quando, afinal, acertava a boca, deixava sempre cair um bocado pelos cantos.
O filho e a nora achavam aquilo uma porcaria e ficavam com nojo. Finalmente, acabaram fazendo o velho se sentar num canto atrás do fogão. Levavam comida para ele numa tigela de barro e, o que é pior, nem lhe davam o bastante.
O velho olhava para a mesa com os olhos compridos, muitas vezes cheios de lágrimas.
Um dia, suas mãos tremeram tanto, que ele deixou a tigela cair no chão, se quebrando. A mulher ralhou com ele, que não disse nada. Só suspirou.
Depois ela comprou uma gamela de madeira bem baratinha e era aí que ele tinha de comer.
Um dia, quando estavam todos sentados na cozinha, o neto, de quatro anos, estava brincando com uns pedaços de pau.
“O que é que você está fazendo?”, perguntou o pai.
O menino respondeu: “Estou fazendo um cocho, para papai e mamãe poderem comer quando eu crescer”.
O marido e a mulher se olharam durante algum tempo e caíram no choro. Depois disso, trouxeram o avô de volta à mesa. Desde então, passaram a comer todos juntos e, mesmo quando o velho derramava alguma coisa, ninguém dizia nada.”
A Plena Avosidade
Assim, refletir sobre a avosidade se faz cada vez mais necessário em tempos em que a longevidade aumenta, proporcionando um maior convívio intergeracional. Essa é uma oportunidade aos mais jovens aprenderem a respeito dos processos e mudanças que acompanham o desenvolvimento humano, preparando-os para a velhice.
O que observo entre mulheres e homens que estão passando pelo processo de envelhecimento, a avosidade pode trazer um olhar positivo sobre esta fase da vida, mais amoroso, com mais vida, alegria e propósito. Pois o envelhecimento, por conta do idadismo, pode ser um fator de discriminação que acarreta a desvalorização na sociedade e, consequentemente, a exclusão social. No sentido de oferecer novas possibilidades de vivenciar essas relações familiares entre netos e avós, o projeto Avosidade, que reúne portal e canal de podcast, é uma experiência muito interessante, pois é voltado para quem está vivenciando esse momento da vida e apresenta a diversidade que há entre o grupo de avôs e avós.
Avós são pais com açúcar
Na primeira vez que fiz uma palestra, liguei para vó para pedir uma força e acender uma vela, e ela, que sempre foi de um humor ácido e desbocado, também me aconselhou a olhar para todos, mentalizando que ninguém era melhor do que ninguém, já que ali todos soltavam pum. Que era para eu confiar em mim mesma e dar o meu recado. Ela não havia passado da 3ª série do primário, muito menos dado alguma palestra na vida, mas soube transmitir a segurança que eu precisava. E, claro, acendeu a vela.
Uma das músicas do Cazuza que mais gosto é “Poema”, escrita por ele e dada como presente para sua avó. O sentimento que o autor expressa nela, resume o que nós, netos, depositamos em nossos avós: a delícia do colo, da proteção e a segurança do amor acima de qualquer dúvida (no YouTube, interpretada pelo Ney Matogrosso, assista aqui).
Foto da Capa: Freepik