Como não há o que não haja no mundo digital, minhas esparsas andanças como espectador de vídeo ou como navegador de redes sociais como o Twitter (rede que eu adoraria poder deletar da minha vida pra sempre, mas não posso, por motivos profissionais) me revelaram, com algum atraso, que existe hoje uma rede de comunicadores dedicados a espalhar o evangelho da palavra comunista.
Uso evangelho deliberadamente, dado que durante algum tempo considerei o comunismo a última fé monoteísta ainda existente sobre a terra – uma piada, claro, dado que as verdadeiras fés monoteístas ainda com força total no planeta representam um perigo real e imediato ao tecido social muito maior do que, por enquanto, o saudosismo de gente jovem pelo “socialismo real”. Basta ver a ascensão coesa da bancada evangélica no Brasil em comparação com mais uma treta interna em que caciques históricos do PCB expulsaram o midiático Jones Manoel (não está por dentro? Leia aqui para saber que o atual e mais premente risco a um sistema democrático no Brasil não vem da esquerda, mas da direita que, bem ou mal, sempre compõe e se unifica, mesmo em torno de um nome como o daquele ex-presidente mercador de joias que, se tudo der certo, não precisarei declinar o nome nunca mais. Então, se algum hipotético reaça por aí achar que sou um dos seus porque hoje decidi me divertir sacaneando jovens comunistas, vá procurar sua turma.
Mas eu dizia que, aparentemente, existe um movimento jovem online para reabilitar o regime de Stálin – não apenas como meme, com o “Stalin Matou foi Pouco” ou coisa assim, mas com uma defesa séria de Stálin como um estadista que fez o máximo diante das circunstâncias adversas, entre elas o panorama beligerante representado por todo o mundo ocidental unido contra a utopia comunista do período. E toda vez que eu vejo ou penso nessa, eu não penso nas falhas dos planos quinquenais, na aliança com Hitler que se tornou necessária porque o próprio Stálin havia dilapidado tanto seu próprio exército que precisava ganhar tempo para reconstruí-lo. Ou no apagamento da história, literalmente. Eu sou um cara da literatura, não da política, então quando vejo essas ingênuas tentativas de reabilitar Stálin, o que me vem à cabeça é o destino de tantos artistas durante o regime do bigodudo. Por exemplo: Isaac Bábel.
Quem foi
Você provavelmente não conhece Isaac Bábel (1894–1940) — e muitos dos que conhecem, incluindo o autor deste texto, só tiveram contato com sua obra depois que o autor foi mencionado no romance Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, de Rubem Fonseca, no qual um cineasta brasileiro era levado à União Soviética para trabalhar no roteiro de um longa-metragem que adaptava um fictício romance de Bábel, encontrado anos depois de sua morte. Depois do livro de Fonseca, aquela que é considerada a obra-prima do escritor russo, A Cavalaria Vermelha, chegou a ser lançada no Brasil por mais de uma editora.
Numa literatura russa já por si desconcertante em sua riqueza, Bábel é uma figura de destaque e, paradoxalmente, uma personagem pouco conhecida. O próprio Máximo Górki o considerava um representante do que de melhor a Rússia tinha para oferecer em termos de literatura. A admiração, aliás, era mútua, como provam alguns dos diários de Bábel que sobreviveram. E, mesmo assim, Bábel é um autor sem renome. Parte dessa condição se deve a ele ter publicado pouco em vida. Outra parte pode ser atribuída a uma cortina de silêncio envergonhado jogada pela intelectualidade de esquerda — considerado romântico, decadentista e contrarrevolucionário, Bábel foi preso em 1939 e, um ano mais tarde, em janeiro de 1940, morto durante os expurgos do sombrio período estalinista (1924–1953). Muitos de seus escritos inéditos foram queimados pelo regime.
A obra
Os 36 contos de Bábel reunidos em O Exército de Cavalaria são resultado de um período que o autor passou, como soldado raso e correspondente do jornal militar O Cavalariano Vermelho, junto às tropas da cavalaria russa durante a sangrenta guerra de fixação de fronteiras com a Polônia, entre 1920 e 1921. Os cavalarianos, no caso, não eram simples russos, mas os folclóricos cossacos, cavaleiros que valorizavam sua liberdade individual, independente de fronteiras, e tinham prazer pelo combate.
Repletas de violência e barbárie, contadas com um tom econômico e ao mesmo tempo coalhado de metáforas e sugestivas imagens, as histórias de Bábel são narradas em primeira pessoa, quase todas do ponto de vista de um único personagem, Kiril Vassílievitch Liútov, jovem judeu agregado ao batalhão de cossacos e um alter ego do próprio Isaac Bábel, judeu nascido em Odessa e ele próprio um militante revolucionário.
São textos que flutuam entre a crônica e o conto — muitas vezes a história é um fiapo narrativo, mero pretexto para a recriação de uma atmosfera. No limite, seus textos são também uma crua análise do paradoxo inescapável do intelectual, aquele que, por definição, seria o responsável pela crítica e pela reflexão de modo a pautar a ação transformadora do mundo. Nas narrativas de Bábel, esse intelectual, que vem a ser ele mesmo, não influi na voragem da verdadeira ação transformadora, a da violência, pautada pelos mais atávicos instintos.
O olhar do escritor é o de um homem ao mesmo tempo horrorizado com a brutalidade dos que estão à sua volta e fascinado pela nobreza rude daquelas figuras de resoluta ignorância. Em muitas das histórias do livro, o protagonista, por um urgente artifício narrativo, entrega a palavra a outros personagens, acentuando o caráter de testemunha deslocada que o autor assume perante suas criaturas. É o caso, por exemplo, do brutal Uma carta, no qual um jovem conta com minúcias, em uma correspondência a sua mãe, a maneira pela qual matou o próprio pai — militar do exército inimigo que já havia, por sua vez, assassinado antes seu outro filho, irmão do rapaz que assina a carta.
Em uma época em que a experiência comunista recém aflorava com a promessa de uma utopia igualitária, o que Bábel testemunha — às vezes abandonando o papel passivo de observador e cedendo ao jogo — é a repetição das atávicas estruturas de dominação pela força. Uma das mais belas narrativas do livro, Guedáli, é apenas um diálogo do narrador com o dono de uma loja de quinquilharias, judeu como ele, na véspera do sabá. Para o idoso comerciante, do alto de suas barbas ancestrais, a violência utópica da Revolução e a violência reacionária dos poloneses não faz lá muita diferença: “Mas o polonês estava atirando, meu caro pan, porque ele era a contrarrevolução. E vocês atiram porque são a Revolução”.
O contraste entre o que prega a revolução em que Bábel acredita e o que ele efetivamente vê, e às vezes faz, nas vastidões geladas da fronteira é uma das molas do livro. Em Meu primeiro ganso, Bábel/Liútov se apresenta à companhia em que servirá e é achincalhado pelo comandante por usar óculos. Designado para um alojamento numa casa ocupada, é hostilizado pelos cossacos que dividirão o lugar com ele (um deles, mais violento, pega o baú em que estão as coisas de Liútov e o arremessa violentamente, quebrando-o). A violência só cessa quando o protagonista esmaga com os próprios pés o ganso da dona da casa em que está alojado e a obriga, sob violenta coerção, a cozinhá-lo para ele. É só aí que Liútov ganha o respeito dos demais: “O rapaz é dos nossos disse um deles, deu uma piscada e pegou uma colherada de chtchi“
A perseguição
A leitura dos contos, muito curtos, alguns não ultrapassando duas páginas, é, também, uma forma de entender por que Bábel se tornou uma vítima inevitável da intolerância estalinista.
Ostracizado pela corrente “oficial” da literatura soviética, Bábel foi sequestrado em 1939 pela KGB em Peredelkino e levado para Moscou, onde foi interrogado sob tortura até “admitir” que era um trotskista (Stálin talvez tenha sido o maior propagandista das forças de Trotsky, uma vez que o seu rival perambulava perdido e impotente pelo mundo mas era pintado como o artífice de uma monstruosa organização subterrânea destinada a sabotar a revolução e da qual se descobriam infiltrados perigosos toda semana) .
Bábel foi então enviado para um gulag, onde morreu em 1941. A morte do homem foi pouco para o regime estalinista. Sua obra precisava perecer junto. Todos os seus inéditos foram confiscados e destruídos. Seu nome foi apagado da fortuna crítica dos escritores russos. Também roteirista de cinema, obras nas quais colaborou tiveram seu nome removido dos créditos – entre eles a trilogia de filmes dedicada por Mark Semjonowitsch Donskoi a Gorki (que, após ter morrido em 1936, em circunstâncias que Bábel considerava suspeitas, foi apropriado pelo regime como seu “escritor ideal”, já que não podia mais arranjar treta).
Foi essa a punição merecida a um “traidor trotskista”? Não, dado que o próprio regime soviético, depois da ascensão de Kruschev, reabilitou Bábel meros 15 anos após sua morte.
Portanto, podem ficar aí com seu Stálin, gurizada. Eu prefiro lembrar Bábel. Entre centenas de outros.