Neste janeiro de 2025, volto à Bahia para rever amigos queridos e lançar meu livro “E fomos ser gauche na vida”. Agora, consciente de que precisamos de inclusão, acessibilidade, diversidade, sustentabilidade e respeito pelas diferenças para uma vida digna. A emoção já toma conta dos meus dias e não tenho dúvidas de que vou viver momentos muito especiais.
Foi no início dos anos 1970 que comecei a entender a riqueza da diferença. Sempre fui carnavalesca, da pré-adolescência no salão da Sociedade Cruzeiro em São Francisco de Paula, ao som das marchinhas tradicionais das bandas do interior, até a Praça Castro Alves, atrás dos trios elétricos e blocos que inundavam de alegria as ruas da capital baiana. Uma celebração contagiante no meio da multidão e um desejo ainda inconsciente de celebrar a vida em um país digno, que olhasse para a diversidade da sua gente.
Conheci o carnaval baiano entre 1970/1980 e curti muito, encantada com uma das mais populares folias brasileiras. Transbordando de alegria e molhados de suor, todos brincavam ao som dos trios, afoxés, blocos e cordões. Um vibrante baile ao ar livre, que se espalhava pelos becos, praças e avenidas, contagiando até a mais empedernida das criaturas. Do Pelourinho, passando pelo Terreiro de Jesus, pelas praças da Sé, Castro Alves e Municipal, Rua Chile, Avenida Sete de Setembro, até chegar no mar, o chão era da massa enlouquecida. Um roteiro que levava para as ruas os tipos mais diferentes, fantasiados ou não, embalados pela magia e pelo calor humano que tomavam conta da cidade. Todos dançavam, cantavam, viviam o carnaval na sua plenitude, noite e dia.
Turistas, curiosos e curtidores, hippies e viajantes do Brasil e do mundo, lá chegavam buscando o paraíso perdido à beira-mar, um lugar de prazer. A anarquia, o delírio, a catarse geral provocada pelo carnaval constituíam a essência desta busca desenfreada. Uma invasão que mudou a fisionomia da capital baiana e se espalhou por lugares que também se somaram à minha vida, como Arembepe e a Aldeia Hippie, lugar sagrado para meditar e descansar, onde cabia de tudo.
Foi na Praça Castro Alves que senti e participei intensamente do carnaval de Salvador. Lá se juntavam artistas, intelectuais, turistas, comerciantes, homossexuais, mulheres, homens, velhos e jovens. Tipos física e socialmente diversos que brincavam juntos como se sempre tivesse sido assim. “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”, cantava Caetano Veloso. Um espetáculo de rara beleza plástica e humana, pelo qual ninguém passa impune. “A Bahia já me deu régua e compasso, quem sabe de mim sou eu, aquele abraço”, canta Gilberto Gil, que diz sobre o carnaval: “É um espaço muito curto para a transfiguração, para a loucura, para a reconciliação total com a carne, que é ignorada o ano todo”. Há uma explosão de vida e os vícios e virtudes humanas fluem naturalmente.
Além de festa popular, o carnaval é uma vitoriosa afirmação cultural dos negros, responsáveis por sua essência.
Proibidos de frequentar os salões do branco, os negros dançavam e cantavam nas ruas, mantendo vivas as origens africanas. Com graça, magia e muita pulsação, passavam noites inteiras entregues a rituais típicos das regiões de onde vinham. O som ijexá, a percussão, o batuque, os metais dos afoxés, espalhando sua arte legítima, inteira e envolvente, apesar da triste repressão a que foram submetidos.
É uma manifestação rica em originalidade, beleza e força, que flui através de uma coreografia harmoniosa. E todos são convidados a dançar. Participação é a característica fundamental desta festa colorida, cheia de ritmo, que os negros levaram para inúmeros espaços e transformaram em uma celebração coletiva. Com ou sem dinheiro. Com ou sem fantasia. O luxo e a riqueza também fazem parte, mas não são essenciais. O que importa são as pessoas que se integram a um dos mais democráticos salões de baile do país. Um espaço ritualístico onde as diferenças culturais, sociais e comportamentais se dissolvem. Pobres, ricos, machos, fêmeas, homossexuais, negros e brancos, todos se irmanam nas ruas e avenidas.
Em um país como o Brasil, onde uma minoria concentra poder e dinheiro e a maioria se debate na miséria, é impossível ignorar as diferenças. Mas no carnaval que brinquei nos anos 1970/1980, eu ainda era ingênua e tinha a ilusão de que éramos todos irmãos. E quem saía para a rua queria se entorpecer um pouco. Ainda hoje são milhares de pessoas que buscam suspender o cotidiano para se perder de prazer e liberdade. “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, canta Caetano. E o povo está vivo e faz a festa com brilho nos olhos. “Mas é Carnaval! / Não me diga mais quem é você! / Amanhã tudo volta ao normal. / Deixa a festa acabar, / Deixa o barco correr”, canta Chico Buarque.
E foi lá, no início dos anos 1970, que comecei a entender a riqueza da diferença.
Nessas duas décadas, 1970/1980, o carnaval de Salvador recebia homossexuais que vinham de todas as partes e aproveitavam a loucura geral para liberar sua orientação sexual, tão reprimida e condenada. No início, saíam às ruas mascarados, dando um toque especial à folia. Aos poucos, foram tirando as máscaras e os desfiles das “bichas”, como eram chamados, tomavam as escadarias da Praça Castro Alves, passarela para os gritos de liberdade. Ali faziam o espetáculo, mostrando que eram homens que desejavam homens e queriam manifestar seus sentimentos. Entre risos, espanto, agressão e afirmação, os gays se fizeram respeitar. Sem máscara e sem medo, andavam pelas ruas, abraçando e beijando ao som dos afoxés, nos cinco dias de catarse coletiva.
Era a celebração da diversidade e eu ainda não tinha a consciência que tenho hoje.
Então, volto à Bahia neste janeiro de 2025 para rever amigos e primas de lá, agora consciente da minha condição e com meu livro debaixo do braço, acompanhada pela minha prima/irmã/parceira Kixi, da minha afilhada e parceira Luana e dos seus filhos Joaquim e Flora.
Nota: releitura de um texto escrito em fevereiro de 2023.
Todos os textos de Lelei Teixeira estão AQUI.
Foto da Capa: Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil