A Copa do Mundo do Catar, um verdadeiro terremoto desde seu anúncio como sede, não só já fez história como pode entrar para a história como um verdadeiro divisor de águas na delicada relação entre o esporte mais adorado no mundo e a intrincada teia de discriminações que o contamina. Com uma frase, Gianni Infantino, atual presidente da FIFA, resume tudo: “Não deixem o futebol ser arrastado para todas as batalhas ideológicas ou políticas que existem”. Era hora, disse ele, de deixar o esporte “subir ao palco”.
Esse não é, de forma alguma, um texto contra o futebol ou contra a seleção brasileira; não se pretende criticar a FIFA – até porque todos os veículos de imprensa já fazem esse papel; não vale tentar expor a narrativa de como a Catar – sem estádios, sem tradição no futebol, pequeno territorialmente e com um insuportável calor de “deserto” no mês de julho – venceu a disputa para ser sede do mundial.
O foco está, justamente, nas ditas “batalhas ideológicas” que o dirigente máximo do futebol tenta evitar a todo o custo em nome de “um futebol que precisa subir ao palco”. O que no passado – não tão remoto – seria facilmente assimilado e numa espécie de acordo de silêncio e cegueira, só interrompido por vuvuzelas estridentes e gols cinematográficos, faria com que todos, cordialmente, tomassem seus lugares para torcer, hoje não é mais possível. Vivemos sim tempos de batalhas ideológicas e isso, pasme, é o mais puro reflexo de nossa evolução civilizatória.
Por um lado, organizações internacionais de direitos humanos apontam gravíssimas violações de direitos humanos entre os trabalhadores estrangeiros que acorreram ao Catar para as obras de construção dos estádios. Chega-se, para perplexidade diante do silencio institucional público e privado, a falar em milhares de mortes ao longo do curto prazo de preparação do país para a evento. Aliás, situação de exploração de estrangeiros que é absolutamente recorrente nos Emirados Árabes e que, na verdade, há décadas, está no centro da viabilidade operacional e econômica de negócio de exploração de petróleo e gás.
Por outro lado, com intensa reverberação, ganha destaque internacional a perseguição que pessoas LGBTQIAP+ sofrem historicamente num país que mantém a orientação sexual homoafetiva como crime passível de prisão de até 7 anos. Incontáveis relatos de pessoas do Catar dão conta de torturas, perseguições, retaliações, assédios e abusos sexuais. Não há como negar, nem tampouco relativizar a simbologia que o maior evento do mundo traz ao validar, no silêncio complacente do “sim” tácito, um ambiente político, jurídico e institucional de homofobia patrocinada pelo Estado.
Como se pode falar em diversidade, inclusão e direitos humanos nesse cenário? Como se pode combater o racismo – ao menos uma prioridade e um compromisso público assumido pela FIFA – nesse cenário? Como celebrar a tolerância e universalidade do esporte quando milhões não são tolerados?
Nesse ponto, com um contraste complexo que só tem paralelo, na minha opinião, com os jogos olímpicos da Berlim nazista de 1936, é que a premência do tema, a forma de ser tratado, o protagonismo múltiplo de novos atores, as pressões do mercado de consumo e a força da narrativa da imprensa podem transformar as cinzas do preconceito catariano em fênix potente para o futuro do esporte e da sociedade.
Pelé fez o coração do Brasil parar nas copas de 58, 62 e 70. Djalma Santos foi escolhido lateral da copa de 58. Didi, Leônidas Silva, Jairzinho, Ronaldo Nazário, Ronaldinho Gaúcho ou Vini Júnior. O que une as histórias desses ídolos absolutos do futebol, louvados por torcidas inflamadas, heróis de copas do mundo que até hoje nos tiram lágrimas dos olhos, é que na vida fora dos campos, alguns diriam na vida real, são homens negros em um país e num mundo machucado pela violência do racismo. São homens negros que vivem o paradoxo de serem idolatrados em campo no mesmo momento em que recebem insultos racistas em redes sociais ou forma de cantos, ofensas e…até mesmo com bananas jogados ao campo. Não há mais como tolerar como natural um futebol de ídolos negros violentados na alma pela violência abjeta do racismo.
Catar 2022 precisa e será um símbolo histórico da copa que aconteceu onde não deveria ter acontecido para que nunca seja esquecida pressão sobre as estruturas discriminatórias, onde a força do consumo consciente boicote marcas e empresas, onde seleções e clubes se neguem a jogar em ambientes de ataque a dignidade humana. Eles combinaram de discriminar milhões de pessoas mundo afora e fazer uma linda copa lucrativa…nós, as pessoas do mundo, combinamos de não aceitar e transformar violência em símbolo de sonhos e lutas que nos movem como sociedade. Essa há de ser, doravante e para sempre, a copa da antidiscriminação.
*Fabiano Machado da Rosa é advogado, sócio fundador do PMR Advocacia e autor do livro “Compliance Antidiscriminatório – lições práticas para um novo mundo corporativo”