Na última semana, tive quatro noites seguidas de insônia, o que é raro. Comumente enfrento alguma noite mal dormida, mas logo na seguinte já recupero o sono. Também não me abalo facilmente com insônia, sou do time do nosso cronista maior, Luis Fernando Veríssimo, que aproveita as noites infindáveis para colocar a leitura em dia. Mas alguma coisa está diferente e acredito ser o que já se nomeia como “ansiedade climática”. Estudos de saúde mental comprovam que pessoas que passaram por desastres climáticos tendem a sofrimento psicológico. Desde a enchente aqui no Rio Grande do Sul me sinto apreensiva, vulnerável. Mas, ainda mais, passou a me angustiar um sentimento de impotência, um não saber exatamente o que fazer, como agir no enfrentamento dessa situação toda – sei que não estou sozinha, na sexta-feira passada mesmo, nossa colega na Sler, Sílvia Marcuzzo, escreveu outra importante coluna, Jornalistas: bioindicadores da emergência climática, também falando disso.
Assim, durante o dia comecei a pesquisar e pensar estratégias de ação, buscando também me aprofundar mais nos movimentos ativistas pelo clima. Mas é claro que essas preocupações acabam saltando do dia para a noite e me roubam o sono. Tudo bem, não vou me abater, sempre tenho em mente o pensamento do filósofo Friedrich Nietzsche: “Quem tem porque viver, suporta quase qualquer como”. Estamos nesse momento, de firmar ainda mais nossos propósitos para suportar qualquer como viver. Não há como ficar imune ao que está acontecendo mais direta ou indiretamente em nossas vidas, se ainda é possível falar de algo na urgência climática que nos atinja indiretamente. O que aprendi nos últimos meses é que preciso respirar para seguir em frente. Para mim, isso significa mesclar conteúdos de estudo, resgatando assuntos de afeto, como os de comida, que por vários anos ocuparam a minha escrita. Por isso, hoje a coluna traz a banana, que, aliás, é minha forte aliada na insônia. Quando sigo desperta na madrugada já avançada, vou na cozinha comer uma banana, com toda calma e reverência, agradecendo aos deuses por essa fruta magnífica. Volto para o quarto e leio por mais 30 ou 40 minutos e o sono chega e mesmo que apenas por poucas horas, já ajuda muito.
Vamos, então, à ela, essa fruta que parece a mais banal de todas, mas é riquíssima em recursos e mistérios. Há pouco mais de 20 anos, chefs europeus se apaixonaram pela banana e passaram a usá-la para criar pratos sofisticados – hoje, inclusive, já é comum promover ingredientes simples em releituras que os “gourmetizam”, o que, às vezes, é até uma bobagem. Na culinária tradicional tailandesa, como também na indiana, na cubana e na africana, a banana sempre foi estrela. A notoriedade geralmente se faz com as tendências gastronômicas da Europa, e a musa paradisíaca ou musa sapientum (nomes botânicos) passou a estampar largamente na mídia internacional e nacional. Li muitas matérias na época e descobri que, para muita gente, a banana é a fruta proibida do paraíso, o que desbancaria a maçã do seu posto. Pra mim foi novidade absoluta, nunca ouvira essa tese. Fui atrás, curiosa em descobrir a origem de tal afirmação e escrevi um texto que agora compartilho com vocês – com algumas mudanças, claro, pois sempre mexemos no texto ao ler novamente.
Os nomes botânicos Musa derivam da palavra árabe mouz, banana, por sua vez derivada do sânscrito moka, ou da cidade do café na Arábia do Sul, segundo Jane Grigson, em “O Livro das Frutas”. Lineu provavelmente tomou o termo Sapientum de Plínio, conhecedor de Alexandre, o Grande e de bananas, embora nunca tivesse visto uma. Escreveu que os sábios da Índia – sapientes indorum – delas se alimentavam: “A folha é como asa de pássaros (…) A fruta cresce diretamente do tronco e é deliciosa por sua doçura”. Paradisíaca é outra referência aos árabes, que afirmavam ser a bananeira a Árvore do Paraíso, ou seja, a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Os europeus – incluindo Plínio – no início chamavam a banana de figo: figue d’Adam, figue du Paradis para os franceses, antes que eles adotassem o termo banane, fico d’Adamo na Itália. Bebendo nas fontes da história, Lineu denominou a banana Musa Paradisíaca, contribuindo para reforçar a versão corrente no século XVIII de fruta proibida.
No Livro do Gênesis, a princípio, Adão é inocente e ignorante, uma lousa sem nada escrito. Então, a astuta serpente dá a Eva duas escolhas: o pecado e o discernimento ou a falta de ambos. Depois da mordida “libertadora” na maçã, Jeová expulsa suas duas pessoas, agora propriamente humanas, do Éden sempiterno para a inclemente planície mesopotâmica. Ao contrário de Abraão, Adão e Eva não são nômades, mas agricultores. A subsequente formação da raça faz parte do resultado da queda, do conhecimento da árvore do bem e do mal. Assim – de acordo com John Romer no livro “Testamento, Os Textos Sagrados Através da História” – é solucionado o enigma que sempre tem de estar presente na narrativa das primeiras famílias, como acontece com Abraão e Sara, mostrando-o como o menor dos males quando se tem de enfrentar a necessidade da procriação. Um rabino, que escreveu há quinhentos anos um comentário sobre o Livro do Gênesis, sugere que a extraordinária fecundidade de Sara, mulher de Abraão, foi por causa da ingestão de uma mandrágora, planta cujas flores púrpuras amadureciam em frutos mágicos todo outono e cujas raízes cresciam como um cacho de pênis. As mandrágoras carregavam a fertilidade dentro de si. Quando uma mandrágora era arrancada da terra, dizia-se que o grito da planta fazia as pessoas enlouquecerem.
A bananeira não é da família das mandrágoras – estas pertencem às solanáceas, como o tomateiro e o pimentão –, mas é curioso que o seu fruto também cresça como um cacho de pênis. E mais, há uma tradição que diz que a bananeira, ao brotar o cacho, iniciado pelo mangará, geme como mulher no parto… Seria, então, por uma semelhança com a mandrágora na associação de fecundidade, que a banana ganhou a versão de fruto proibido? Vai saber… Chego a conclusão de que não há conclusão a chegar, porque o mundo do Livro do Gênesis, o mundo de Abraão, é um mundo de interpretações, como, aliás, toda a linguagem humana. A maçã, portanto, continua sendo a referência no Jardim do Éden.
Proibida ou não, a verdade é que a banana é musa inspiradora de delícias sem fim. Crua ou madura, amassada, cozida, assada, frita, transformada em prato doce ou salgado, batida, vitamina ou sorvete, até como remédio já foi indicada. E a folha da bananeira é amplamente útil, nela envolvemos os acaçás e os abarás da Bahia – comidas rituais do candomblé e de outras religiões de matriz africana – para serem cozidos e os peixes para assar ou grelhar. No Mato Grosso, fazem uma sopa com bananas verdes. No Norte e no Nordeste, assim como na África e na América Central, por vezes, substitui o pão e a batata. E qual criança não se deliciou com uma banana bem desmanchada com o garfo, coberta de açúcar e canela? As lembranças gustativas da infância são as mais poderosas, não cedem lugar à receita sofisticada de qualquer espécie – é só lembrar das madeleines de Proust. Minha mãe fazia para o nosso lanche uma torradinha deliciosa com banana. Sobre uma fatia de pão, coloque queijo colonial ou muzzarella, banana cortada em fatias finas no sentido longitudinal, polvilhe com só um pouquinho de açúcar – ou mesmo sem açúcar, pois a banana quente fica bem doce – e canela em pó e leve ao forno até dourar. Posso sentir o aroma!
Apesar de ser uma de nossas frutas mais populares, não se originou na América e sim na Ásia e na África. É engraçado, porque em geral se faz uma ideia da bananeira como uma planta nativa de nossas florestas tropicais, mas nem mesmo os indígenas a conheciam. Os nambiquaras da Serra do Norte, Mato Grosso, já tinham lindos roçados de mandioca e milho, ornavam sua cerâmica, fabricavam bebidas fermentadas e, em 1912, tinham até cães de estimação, mas ainda desconheciam a banana. Luis da Camara Cascudo diz, no livro “História da Alimentação no Brasil”, que ela é hóspede desde o século XVI, e foi tomando lentamente a posse da casa. O que só nos trouxe benefícios. Na economia, contribui com grande volume de exportação. Para a população, ajuda no sustento de larga parcela carente da sociedade (uma composição poderosa e saborosa com arroz e feijão), pelo fácil cultivo, preço razoavelmente acessível e uma fantástica gama de propriedades nutricionais: vitaminas A, B, C, e E, sais minerais (especialmente potássio), fibras e carboidratos em grande quantidade. Nossa eterna estrela do tênis, Guga, era um aficionado da banana nos intervalos dos jogos. Fruta de vencedor, yes, nós temos banana!
Foto da Capa: Montagem com fotos de Martin Winter, Aliko Nicholaus e Vivianne Faesen – Pixabay
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