No final de cada ano, sempre é comum ouvirmos algum noticiário de que uma pessoa “negra” não passou na banca de heteroidentificação ou que uma pessoa branca “entrou” na vaga de cotista em alguma instituição pelas vagas afirmativas. Este artigo pretende alargar as informações e o pensamento crítico de quem lê, mas para isso, precisamos primeiramente trazer algumas informações sobre como surge a dinâmica de ações afirmativas no país.
As bancas de heteroidentificação são comissões que verificam a autodeclaração de candidatos a vagas em concursos públicos e universidades públicas no Brasil, especialmente aqueles que se declararem como negros (pretos e pardos). As outras vagas afirmativas, tais como para indígenas, quilombolas, PCDs – pessoas com deficiência e transgêneras, por exemplo, exigem outro tipo de verificação, geralmente comprovando por documentos (laudos médicos e certidões de nascimento e residência). Essas comissões foram criadas para garantir a efetividade das políticas de ação afirmativa e combater fraudes (que começaram a existir após a implementação dessas cotas), garantindo o direito adquirido nas políticas de inclusão e de direitos humanos desenvolvidas no Brasil.
As leis de cotas no Brasil começaram a ser implementadas no território nacional em 2012 com a Lei nº 12.711, também conhecida como Lei de Cotas. Essa lei garante que uma parte das vagas em universidades públicas seja reservada para estudantes de escolas públicas, autodeclarados pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, que depois foi ampliando para a administração pública federal, com o Decreto 7.824/2012.
Além disso, vale chamar a atenção que a participação popular nas formulações e manutenção das leis de cotas foi e é significativa. Antes da aprovação da lei nacional em 2012, muitas universidades, como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ em 2001 e a Universidade de Brasília – UnB em 2002, já haviam implementado sistemas de cotas. O movimento negro e outros grupos sociais participaram ativamente das discussões e debates que levaram à criação, promovendo intensos debates sociais e, finalmente, a aprovação da Lei de Cotas.
A mobilização popular foi crucial para garantir que essas leis fossem aprovadas e implementadas, assim como mantidas no último debate e readequação feita no final de 2023 pela Lei 14.723/2023. Portanto, segue sendo uma demanda popular e um compromisso do Estado que reconhece, desde a Conferência de Durban, em 2001, que o racismo é histórico no Brasil e que esse problema provoca desigualdades sociais estruturais. Há o entendimento, também, de que para mudar o rumo dessa história são necessárias intervenções para a modificação do panorama social de desigualdade racial, de gênero e social.
As bancas são chamadas de heteroidentificação porque verificam se os candidatos que se autodeclaram como negros (pretos e pardos) realmente possuem características fenotípicas compatíveis com essa autodeclaração. Em outras palavras, é uma aferição a partir de características físicas, como a cor da pele, tipo de cabelo e traços faciais. Isso não compreende, porém, a herança genética (ser filho ou neto de pessoas negras), pois são os traços físicos que irão determinar o deferimento ou não da candidatura por parte das pessoas que compõem a banca.
Gostaria de salientar que, como pano de fundo, temos uma questão importante que envolve o contexto histórico e social que é o conceito de raça, construído e ligado às características físicas das pessoas, principalmente pela cor de pele – o chamado racismo de marca. As políticas de ações afirmativas, que incluem as cotas, visam reparar e destruir essa construção social – o racismo -, que é tanto mais contundente quanto mais escura for a pele da pessoa – uma marca.
O termo “heteroidentificação” refere-se ao processo de avaliação da identidade racial de um indivíduo a partir da perspectiva de terceiros. Então, utilizar a fenotipia em vez da genotipia significa reconhecer que o racismo e a discriminação são fenômenos sociais e históricos que se manifestam com base em características visíveis. Esse enfoque permite abordar diretamente o racismo e suas formas de atuação, principalmente pelo preconceito que as pessoas racializadas enfrentam em suas vidas cotidianas e objetiva diretamente promover a inclusão social daqueles que historicamente sofreram e sofrem com o racismo.
As bancas de heteroidentificação são regulamentadas por várias leis e resoluções, incluindo as principais:
- Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010): Garante a igualdade de oportunidades e combate a discriminação racial.
- Lei nº 12.990/2014: Estabelece a reserva de vagas para negros em concursos públicos federais.
- Portaria Normativa Nº 4: publicada em 10 de abril de 2018 no Diário Oficial da União pelo então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
- Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): Regulamenta o procedimento de heteroidentificação nos concursos públicos do Poder Judiciário.
O movimento social brasileiro, principalmente o antirracista, avalia que há alguns pontos positivos na política que são:
- o aumento da representatividade, pois consiste em uma ferramenta que ajuda a aumentar a representação de negros e indígenas em cargos públicos e em instituições de ensino superior;
- combate à fraude, pois reduz falsidades relacionadas à autodeclaração, garantindo que as vagas reservadas sejam ocupadas por quem realmente se enquadra nos critérios estabelecidos.
- promoção da igualdade racial e reparação histórica das disparidades sofridas por esses grupos.
Socialmente têm-se levantado também alguns pontos cheios de controvérsias e desafios, pois há debates sobre a eficácia e a justiça do processo de heteroidentificação, com alguns argumentando que ele pode ser invasivo ou estigmatizante; também são questionados os custos e complexidade do trabalho, pois o processo pode exigir recursos significativos para sua implementação e manutenção (contratação de profissionais, estrutura tecnológica e de mídia, entre outros); e, por fim, o medo da discriminação, pois existe o risco de que o processo possa levar a novas formas de segregação ou exclusão, especialmente se não for bem administrado. Importante salientar que as ações afirmativas se embasam na discriminação positiva, e seria romantizar a inclusão sem pensar que para alguns ocuparem lugares, outros deixarão de ocupá-los.
Incontestavelmente, as bancas de heteroidentificação são uma ferramenta importante para garantir a efetividade das políticas de ação afirmativa no Brasil, que são muitas. Embora apresentem inúmeros desafios e controvérsias, seus resultados positivos em termos de aumento da representatividade e combate à fraude são mais significativos que os fatores questionáveis. É essencial que haja uma formação permanente para as pessoas que compõem essas comissões, e que elas sejam bem regulamentadas e administradas para maximizar seus benefícios e minimizar seus impactos negativos.
Também é sempre positiva a discussão sobre mecanismos antirracistas, para que cada vez menos naturalizemos a ausência de pessoas negras e indígenas, homens e mulheres, sejam cis ou transgêneros. Pensar que isso não está geneticamente vinculado a sua cor de pele e, sim, que é uma construção social a ser aniquilada – o racismo e a consequente exclusão racial.
Outra questão importante é que cada vez menos permitimos em nossas relações que pessoas burlem o sistema em benefício próprio, negligenciando aquilo que é resultado de uma luta coletiva e popular e diz respeito a uma reparação social de desigualdades.
É chegada a hora de nossa sociedade primar pela honestidade, haja vista que as bancas não se constituíram ao mesmo tempo que a lei de cotas. Elas foram um mecanismo criado mediante a presença de pessoas mal-intencionadas, querendo tirar vantagens em tudo e em cima de um segmento da população historicamente vulnerabilizado por diversas formas de violência e exclusão.
Sobre as cotas e todo o debate que elas envolvem, poderemos discutir em outro artigo ou até mesmo presencialmente, quando as oportunidades se apresentarem.
Até!
Nina Fola, mãe de Aretha e Malyck, é multiartista, socióloga, atuante nos coletivos @afroentes, @coletivoatinuke e @odaba.br. Aborda a questão de raça e gênero em todos os seus trabalhos acadêmicos, artísticos e profissionais. Gestora do @cavalodeideias, uma consultoria em diversidade e inclusão onde faz palestras e formações. (@ninafola)
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