As trilhas pela Chapada dos Vagalumes é um exemplo de como é possível tomar um ótimo banho de floresta pela Mata Atlântica que resiste ao desmatamento.
Este final de semana por toda uma manhã foi possível conhecer cinco diferentes cachoeiras na região costeira da Serra Geral (RS), formações rochosas milenares, espécies endêmicas e tomar um banho… de floresta.
O guia, Cícero, é nativo da região, estudou geografia e hoje atua em uma entidade pública. Conhecedor não só da história de mais de 250 milhões de anos, também é um bom conhecedor de detalhes peculiares dos locais por onde passávamos. Como um costaneiro — diferente de um serrano ou de um litorâneo — se orgulha de aliar prazer e atividade florestal. Segundo ele, os costaneiros são pessoas e comunidades que habitam a costa da Serra Geral, já que o relevo da Serra Geral começa a ganhar forma nessa região.
Encontramos Cícero em uma dessas tendas à beira de uma estrada de asfalto quente que rasga os territórios brasileiros — infraestruturas humanas. Após um rápido aperto de mãos nos deslocamos imediatamente até um bairro rural — melhor, um território florestal — de uma simpática cidadezinha: Itati. Segundo nosso guia: um minicipío. É tão pequeno que não é muni e sim mini-cípio. Amei o senso de humor. Avançamos, estacionamos o carro (sim, a base de combustível fóssil… ainda). Já na área florestal (não protegida oficialmente por nenhum regramento estadual ou federal) nos dirigimos às instruções de como caminhar pelas trilhas da Mata Atlântica daquela região — diga-se de passagem atualmente restam pouco menos do que 15% da vegetação original. Pederneiras, bastão, mochila. Prontos para o banho. Só de olhar para a mata, o corpo já relaxou e o calor do asfalto se tornou uma lembrança distante. Era hora de mergulhar na floresta.
Foi mais do que um banho, foi uma ducha intensa tanto para o corpo como para a alma. A primeira cachoeira é conhecida como Brinco da Princesa (Fuchsia hybrida), por ter algumas espécies remanescentes até no meio da correnteza do pequeno rio azulado — além do fato de ser uma árvore típica da Mata Atlântica e símbolo do Rio Grande do Sul. Contemplamos cada cor da flor de fuchsia. Os tons de fuchsia. A seguir partimos para a segunda cachoeira também de águas azuladas. Com uma pequena queda d’água um pouco maior do que a primeira, paramos sobre uma formação lítica enorme — enfim, uma grande pedra à beira do poço azulado. Um tempo depois (completamente indeterminado, pois não olhávamos para o relógio) partimos para a terceira cachoeira, a qual nos esperava com suas águas verde-azuladas. Bem, não era uma cachoeira de fato, pois estávamos sobre a mesma. Era um micropoço de borda infinita. Altura: 35 metros. A vista por cima é inacreditável. Dali não é possível ver o fundo da cachoeira. Alguns fazem rapel — aqueles que adoram adrenalina a flor da pele. Aqui, até a pele tem flor em vários tons e aromas. Após uma longa meditação complementando o paredão verde da Mata com seus 42tons de oby, seguimos em frente.
Nossa caminhada continua por um pequeno trecho através da floresta densa. Entre cordas, barro, ladeiras e lombas íngremes avançávamos. Uma parada para contemplar um megaformação rochosa. A encosta de basalto tinha algumas indicações de ferramentas pré-colombianas — ou povos pré-incas. Cortes afiados na estrutura rochosa. Cortes quadrados. Longe de qualquer tipo de acidente natural. Humanos ancestrais já passaram por aquelas trilhas, rasgando a formação rochosa de modo milimétrico. A tempo: o nome Itambé, outra região da Serra Geral, tem origem no tupi, pedra afiada. É a característica do basalto (quebradiço em lâminas) que possibilita fazer instrumentos líticos, de pedra afiada, como machados e facas. Fizemos uma caminhada dinâmica por baixo de pedaços de rochas que parecem estar suspensos por fios invisíveis — me lembraram as rochas flutuantes de Avatar. Alcançamos o meio da gran cachoeira. A vista, de tirar o fôlego.
Dali, partimos para a base da última cachoeira da Chapada dos Vagalumes: a Cachoeira dos Vagalumes.
As sensações corporais, existências e espirituais de estar conectado com essa cachoeira naquele espaço-tempo é indescritível do ponto de vista simplesmente racional (Deixarei às leitoras e leitores que se permitam um mergulho oby em alguma floresta, mesmo urbana).
Como não lembrar dos japoneses que têm um termo só para essa prática existencial-espiritual: shinrin-yoku, o banho de floresta. Esse banho não só é necessário como é essencial para a manutenção da própria existência humana-floresta. Essa prática também nos faz refletir sobre as dicotomias que resistem em cisalhar-nos da nossa essência: homem-natureza, sociedade-ambiente, urbano rural, enfim, o paradigma homem-animal.
Talvez seja necessária uma união não só com o vegetal, mas um reconhecimento e uma volta às nossas raízes literalmente naturais. Obviamente que é importante reconhecermos o avanço tecnológico, mas é fundamental que não sejamos escravizados pela Tecnologia. A Natureza é viva e está entre nós. Ela está conosco no dia a dia, em cada respiração.
Um banho de floresta nos faz lembrar que para além da tecnologia, do concreto, do urbano duro, existem várias formas da Natureza, os contatos possíveis internos e externos, a percepção necessária com a nossa própria natureza, com o que há de melhor da nossa existência, da nossa alma.
Por hora faço uma pausa para escutar o farfalhar das folhas oby-outonal de uma pitangueira em minha varanda urbana. Como diz Krenak aos urbanóides: “temos que reflorestar nosso imaginário” para podermos reflorestar de fato nossas urbes. Abraços florestais.
Nota: oby (termo do tupi original) pode ser entendido como uma cor que engloba um amplo espectro de tons de verde–azul. Curiosidade: algumas etnias não têm um termo específico para azul, mas uma derivação do termo verde.
Dica de leitura: Aílton Krenak. Futuro ancestral. 2022.