25 de outubro – Dia Nacional de Combate ao Preconceito contra as Pessoas com Nanismo –, um dia dedicado à reflexão sobre as dificuldades e o preconceito que ainda enfrentamos cotidianamente, foi marcado por atividades no país inteiro. Fui convidada pela Vélvit Severo, diretora de Políticas Públicas da Associação Nanismo Brasil/Annabra, para estarmos juntas em uma conversa sobre as Barreiras que Evidenciam o Nanismo (foto da capa), traçando um panorama do Rio Grande do Sul. O encontro aconteceu à noite na Casa dos Raros (Rua São Manoel, 730 – Bairro Santa Cecília), que eu não conhecia e tem uma proposta muito interessante. É o primeiro centro da América Latina dedicado às doenças raras com foco no acolhimento, no diagnóstico, na orientação e na pesquisa.
Em encontros assim é impossível não constatar que as pessoas com nanismo ainda sofrem uma discriminação absurda. Está nas atitudes, nos dedos apontando, nos risos debochados, nas chacotas. Está nas definições dos dicionários, na fala e na escrita, através do uso pejorativo da palavra anão. Sei que muitas vezes radicalizo nas minhas posições e críticas, mas são inúmeras as barreiras que enfrentamos e é fundamental reagir às manifestações que nos perseguem. Está no olhar que não nos reconhece, não vê talento em pessoas com a nossa condição e nos afasta do convívio social, o que chamamos de capacitismo. Mas, para além dessas barreiras, é estimulante perceber que hoje nossas vozes ecoam.
A discriminação da diferença é equivalente ao racismo, ao machismo, às questões relacionadas à raça, gênero, condição social e por aí afora.
“O corpo sem deficiência é o ‘normal, ou seja, aquele que condiz com a norma social, enquanto o corpo com deficiência é o desviante, a ser corrigido”, como resumiu sabiamente Marcos Bliacheris, meu amigo e parceiro aqui na Sler, com quem sempre aprendo. Segundo o Marcos, “as pessoas são diferentes, inclusive as pessoas com deficiência. Não é porque você conhece uma pessoa surda que sabe como agem as pessoas surdas. Os cegos não são todos iguais, nem os autistas. Há pessoas com deficiência tristes, alegres, cada uma é única, cada pessoa é diferente e única”.
Sob o ponto de vista ético e humanista é desolador perceber que anão é uma palavra usada para adjetivar situações que envolvem o grotesco, o indigno, o corrupto, o engraçado, o que é pouco e provoca o deboche, a piada e o riso fácil. Ao procurar uma definição no dicionário encontrei: “Aquele que, em relação à média, tem uma altura muito reduzida. Quem sofre de nanismo, pequenez anormal em relação aos demais indivíduos. Quem é muito baixo, raquítico, fraco, nanico”. A definição, além de pejorativa e bizarra, desconhece a nossa condição. Termos como “sofre, raquítico e fraco” já vêm contaminados pela discriminação. E tem quem diga ainda que é um “defeitinho”.
Esses usos indevidos da palavra já respingaram e ainda respingam muito na minha vida. E têm piores!
É o caso de expressões como “O ano ou um anão?” (artigo de Flávio Tavares publicado no jornal Zero Hora no final de 2019, referência ao ano que ele considerou medíocre). “Salário com perna de anão” (referência ao salário baixo). “Anão moral” (um político/Ciro Gomes querendo ofender outro político/Michel Temer). “Anão diplomático” (diplomata de um país ofendendo diplomata de outro país). “Anões do orçamento” (grupo de deputados envolvidos em grandes fraudes no final dos anos 1980). Ou seja, ofensas e corrupção de políticos no poder diretamente vinculadas à estatura das pessoas com nanismo. E por aí vai! O uso preconceituoso da palavra está tão entranhado no inconsciente coletivo que poucos estranham. E quem sofre com isso? Esses seres “imperfeitos” como nós que causam constrangimento porque apontam para uma diversidade de condições e comportamentos humanos ainda não compreendidos e aceitos como deveriam ser. É urgente contestar tais usos porque são pontos de vista do senso comum que reforçam a rejeição que pessoas com nanismo sofrem desde os tempos medievais, passando pelos regimes fascista e nazista, quando a recomendação era que fossem eliminadas.
Mais de 45 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência, o que significa que não correspondem ao padrão instituído, reconhecido pela sociedade normalizada em que vivemos – praticamente 24% da população. Não é pouco! Portanto, não podemos nos submeter ao discurso reducionista da meritocracia ou ao discurso capacitista, que não reconhece talento em uma pessoa diferente da média. Por mais que tenhamos rampas, calçadas adequadas, balcões mais baixos, banheiros adaptados, elevadores acessíveis – o que é ótimo – nossas vidas vão continuar frágeis se o preconceito que se desnuda sem freios não for combatido. O que nos cabe neste contexto é buscar o respeito pelas nossas diferenças, encarando com dignidade os problemas. É lutar pelo direito de ir e vir com segurança porque o que temos ainda é pouco, apesar das promessas, das frentes parlamentares, dos discursos inflamados e barulhentos. Incluir não é concessão, como de modo superficial são percebidos os direitos das pessoas com deficiência. Os espaços de legitimação das diferenças são ainda pontuais e tímidos.
Não teremos uma sociedade diversa sem Inclusão, Acessibilidade, Respeito pelo Outro. E esta é a minha luta, estimulada pelo desejo de viver em um mundo que acolha as pessoas, independente da condição física, mental, intelectual, visual, auditiva, idade, aparência, tamanho, raça, cor da pele, gênero, opção sexual, religião, classe social, enfim.
Uma sociedade que respeite todas as diferenças porque somos diversos sim. Ninguém é igual a ninguém.
Uma educação voltada para as diferenças, que reconheça dificuldades, habilidades e talentos e promova a inclusão, é o melhor caminho. Em casa, na escola, na rua, nos espaços públicos. E é um dever das administrações municipais, estaduais e federais semear este caminho, em sintonia com suas comunidades. Assim como é um dever das empresas entender os limites de uma pessoa com deficiência, estimular sua inserção no trabalho, orientar, acolher, e não apenas jogá-la em uma função para cumprir a lei. Ver o outro com sensibilidade é transformador.
Não queremos a “normalização” que enquadra e segrega. Queremos dignidade para viver com a nossa condição.
Antes de finalizar, quero fazer uma observação sobre o tempo em que eu era uma jovem cheia de sonhos, saindo para o mundo, e os dias atuais. Naquele tempo éramos solitários. A luta era pessoal ou familiar, não coletiva. E as trocas eram tímidas. Pouco se falava. Hoje temos uma comunidade ativa e estimulante, que integra as pessoas com nanismo de norte a sul do país, conscientizando, apontando caminhos, trazendo novas perspectivas. E esta comunidade unida vai derrubando barreiras, assumindo protagonismos, fazendo amizades e sedimentando uma vida solidária, com afeto e acolhimento.
Hoje temos protagonismo. Temos voz. E eu só tenho a agradecer a Vélvit Severo e a Kênia Rio, presidente da Annabra/Associação Nanismo Brasil, por esta jornada feita com sensibilidade e determinação, cheia de conquistas, que nos juntou.
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Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não se sabe o número exato de pessoas com nanismo no Brasil. Não temos pesquisa nem estatísticas, mas “estima-se que a cada 15 mil nascimentos, uma criança nasce com algum tipo de nanismo”.
Foto da Capa: Cleiton Pereira